sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

"Mao" - José Nilton Mariano Saraiva

Durante longos 10 anos, a chinesa Jung Chang e seu marido Jon Holliday se deram à estimulante e trabalhosa tarefa de debruçar-se sobre os arquivos disponíveis no Oriente e Ocidente, objetivando desnudá-lo por inteiro; entrevistaram centenas de pessoas (dentre as quais muitos dos principais atores envolvidos intimamente com a personagem principal, tais quais Henry Kissinger, George Bush, Imelda Marcos, Lech Valesa, Richad Nixon e até o Dalai Lama); viajaram de Norte a Sul, Leste a Oeste à busca de algum dado novo que eventualmente pudesse ter escapado; e, alfim, nos presentearam com a mais completa e caudalosa biografia do líder chinês Mao Tse-tung.

E o que emerge das páginas de “Mao-A História Desconhecida” (Companhia das Letras, 954 páginas) é tão grandioso quanto impressionante, ao nos apresentar em toda a sua crueza, sordidez e pujança um homem obcecado pelo poder e disposto a vender a própria alma a fim de atingir os objetivos colimados, independentemente dos métodos a serem usados; nem que para tanto isso implicasse em deixar a ética de lado, relegar a questão moral às calendas ou esquecer da existência de algo que se chamasse ideologia; em seu juízo de valor, valia até trair aqueles que lhe dedicavam fidelidade canina.

Megalomaníaco e disposto a ser líder em uma China que comandaria o mundo (“...precisamos controlar a Terra”) optou por transformá-la numa superpotência militar, porquanto  “...o poder vem do cano de uma arma de fogo”. Para tanto, aliou-se ao então líder soviético Joseph Stálin a fim de, paulatinamente, construir o arsenal bélico necessário a tanto. Só que, como não dispunha de recursos necessários para adquiri-lo, obrigou os chineses a jornadas extenuantes e absurdas na agricultura, a fim de produzir os grãos necessários ao pagamento das armas russas. Firmou-se então a parceria: da Rússia armas e tecnologia para a China; em sentido inverso, toda a produção de grãos era destinada à vizinha União Soviética; enquanto isso, os próprios chineses passavam fome e sob um frio siberiano tinham que se valer de raízes de árvores e até lixo para debelarem a fome (e ai de alguém que fosse pego escondendo algo).

No mais, há relatos impressionantes sobre a verdadeira natureza da Longa Marcha, nos anos 30; sobre a ajuda decisiva da União Soviética ao Partido Comunista Chinês; sobre a invasão japonesa durante a Segunda Guerra Mundial; sobre a epidemia de fome que varreu a China matando mais de 70 milhões de chineses (que eram proibidos de comer, embora existisse comida, sim senhor); sobre a Revolução Cultural, que estimulou a prática da denúncia e instaurou o terror entre a população, e por aí vai.  
  
Algumas particularidades: foi Mao quem sugeriu ao líder alemão Walter Ulbricht a construção do Muro de Berlim; Mao raramente escovava os dentes, tanto que nos últimos anos sua dentadura era de uma negritude só; hidrófobo, passou 27 anos sem tomar banho (preferia que lhe passassem uma toalha molhada no corpo); lá pras tantas, sem nenhum escrúpulo obrigou o amador exercito chinês a se envolver em confrontos suicidas, porquanto “... se metade da população chinesa morrer, não fará a menor falta”; traiu seus principais colaboradores, chegando a proibir o tratamento de um câncer terminal para Chou Em Lay, sua eminência parda, porquanto este não poderia viver mais que ele: foi um marido por demais infiel e um pai omisso, que não se preocupava nem um pouco com os filhos; gostava do luxo e da comodidade.

Enfim, se você tinha Hitler como a personificação da “besta fera”, um monstro horripilante em razão do que aprontou na II Guerra Mundial, ao conhecer em detalhes a vida de Mao constatará que o austríaco-alemão foi um iniciante, mero aprendiz, vulgar amador ante ele: traição, tortura, fuzilamentos, sadismo, frieza, crueldade, terror e tudo que você possa imaginar de ruim vigoraram na China naquele tempo.


Num ponto a convergência é indiscutível e unanime: sob Mao, o povo chinês não apenas comeu o pão que o diabo amassou; o povo chinês conviveu diuturnamente com o próprio Lúcifer (os detalhes de certas mortes são horripilantes). 

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