segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Arca


J. Flávio Vieira

                                                               Passados tantos anos, as imagens se vão turvando, surpreendidas, aqui e ali,  apenas pela fresta da saudade. A ausência, antes dolorida como uma chaga aberta, foi, aos poucos , se anestesiando, bafejada pelo bálsamo do tempo, mas a cicatriz  permanece ainda sensível como um queloide. A vida, depois do cataclismo, precisou ir tomando jeito. Recolhidos os estilhaços do cristal esfacelado, tentamos recompor o amálgama dos dias e das horas. Restou-nos o ranço final do caju sorvido , esse travo que  lutamos para não obscurecer o dulcíssimo sabor da polpa que o antecedeu. Afinal, a vida talvez seja exatamente isso : a capacidade de se ir reconstruindo nosso mundo a cada dilúvio prenunciado, catando e depositando na Arca os nossos despojos de guerra.
                                                               Fecho os olhos e tento te imaginar nonagenário, como serias hoje. O tempo te teria sugado todas as forças ? Manterias o vigor mínimo para apreciar os milagres da existência ? A inexorabilidade dos dias te levaria a um estágio no reino vegetal antes da mineralidade extrema, destino de todos nós ? Serias um velhinho lépido, com um mínimo de dignidade, ou apenas mais um objeto de decoração da casa ? Fecharias o ciclo da vida, retornando à outra extremidade da infância, ou obterias o privilégio da lucidez, do bom humor e da resignação que sempre te foram fortes aditivos  existenciais ? Desfrutarias de  uma vida ou apenas de  sobrevida ?

                                                               Estas perguntas ferem-nos como um punhal, talvez porque carreguem consigo a impossibilidade de resposta. Pesa-nos a certeza da imponderabilidade de tudo, do amálgama perecível dos segundos, da finitude líquida e fluida dos casos , ocasos e acasos. Nossos sentimentos assentam seus  sonhos de perenidade  na  amorfa e gelatinosa  nuvem da impermanência. Resta-nos, tão-somente, curtir cada vidrinho do cristal despedaçado , onde vemos refletido o divino acaso que nos pôs juntos na mesma viagem. Ali o caquinho do teu perene bom humor e que terminou contagiando toda a família. Acolá o fragmento do teu despojamento, pronto a enfrentar as vicissitudes sem a seriedade que elas pretendem nos exigir. Adiante o estilhaço da tua complacência ante o sofrimento e a perspectiva do abismo. Ao lado o pedacinho da tua inteligência que ainda reluz como se permanecesse imantada. Aos poucos refazemos o cristal que um dia embelezou esse mundo com seu brilho e sua transparência. Até parece que um dia não se esfacelou ante os arroubos do tempo. Ganha até um certo ar de perenidade, sempiternos fragmentos ungidos pela cola da Saudade. 

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