Todo o horizonte da existência desfaz-se em espuma de maré,
entre a linha que delimita o invisível e a beira mar onde as ondas se escumam. O
desmanchar-se da superfície móvel do mar prende meu olhar já nos instantes da
despedida das luzes do Ceará. E, no restaurante do meu amigo João de Gabriel,
enquanto Raimundo Cabirote dava vida à melodia brasileira, desfazia-me em
espumas do mar.
Desfeito, sílabas soltas, letras desgarradas, conceitos perdendo
forma, a síntese daquele mundo a dominar a mente tão plena de luz agora como depois
filamento partido de uma lâmpada queimada. Mas eis que entre a inação das
espumas igual ponto branco se firmou. Coalhou no olhar.
E do fundo do olho, entre as espumas do mar, aquele ponto
branco não se desfez e mais ainda, com pouco moveu-se no espaço. Moveu-se e
cresceu. Num viajar em direção à praia. O recorte de uma vela latina, branca
como as espumas, negou a negativa do feito. Um novo feito acontecia no centro
das águas desfeitas.
E de repente a rua Bárbara de Alencar, sem nenhuma
semelhança com o que encontra, quem por ela caminha ou passa de automóvel, é
uma vela latina branca. Branca como as espumas da desova dos girinos destas lembranças
anfíbias. E nem preciso mais que um quarteirão, entre a João Pessoa e a Santos
Dumont.
E nem preciso da Confeitaria Glória e nem das asas do 14
Bis. Apenas entro no Salão ABC ouvindo o cric crac do movimento manual da
máquina de cortar cabelos e o inerente ar perfumado da Aqua Velva. Passos em
ambas as calçadas da rua estreita onde o comércio faz seu desfile de ofertas e
preços.
E são tantas lojas, armarinhos, mercearias, bares, salões,
farmácias que coisas mais ainda se esquece como retalhos de uma peça colorida e
desenhada nas prateleiras quando a roupa não se vendia feita. E mais ainda: os
nomes de fantasia das placas, que tanto anunciam, eram menores que os próprios
donos.
Ora quem há de pensar noutra denominação que não seja seu
José Eurico, com seu corpo magro e o modo educado. Abidoral absolutamente
patrimonial com seus herdeiros talentosos do nome e após o comércio no cair da
tarde solando um violão na brisa da calçada. Ora está escrito. Anotado. Pronto
para conferência.
A caderneta de compras na mercearia de Ciço Beija Flor pode
haver nome mais belo entre a fantasia de uma placa de comércio e o próprio que
assim se nomeou? Pode. Mas como a vela latina vem em minha direção, vou
afirmando que não há.
O Bar de Jan Jão. É assim mesmo que minha lembrança oral
traduz em letras? Não me tome por desatento, mas nem quero nomear os
frequentadores, assim como esqueci do anátema que alguém um dia aplicou a Yô Yô
apenas por que ele abria as portas para cessar os tremores do delirium tremens do amanhecer. Atento,
Yô Yô, fica em outro quarteirão.
Moacir quem há de esquecer. Ontem tomei um gole de alegria
por sabe-lo longevo. Há pouco se fez espuma quando por mais de noventa anos se
fez uma vela latina. Em busca de fregueses. Sempre o poder sedutor da venda. Da
negociação. Do baixar o preço no final da conversa após a alta do início.
Do chegar mais ainda a vela latina. Chegar à beira mar.
Aportar. Descer o jangadeiro com o peixe e firme plantar os pés no chão
iluminado com tantas luzes. Destas luzes sem filamentos em risco de partir-se.
Uma luz permanente, digamos assim. Mesmo que a permanência seja a afluência de
novas gerações.
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