quinta-feira, 23 de abril de 2015

A ATLÂNTIDA AFUNDA NO MEDITERRÂNEO - José do Vale Pinheiro Feitosa

A certeza de nossas posições sempre estará no deslocamento da história, criando contradições, oxidando verdades, introduzindo novas coordenadas. Um dos temas jornalísticos mais dramáticos do momento é a tragédia da migração clandestina africana para a Europa, especialmente no Mediterrâneo.

Na semana um barco com 850 pessoas a bordo naufragou no estreito da Sicília. O comandante do barco, um Tunisiano, é acusado pelos passageiros de ter fechado as pessoas que vinham no porão e no estágio inferior do barco. Aprisionados, eles se afogaram.

Este drama leva nossas posições num sentido, para logo a seguir mudar de rumo frente a como se manifestam as autoridades europeias.

No primeiro sentido nos posicionamos contra este tipo de pirataria que carrega a mão-de-obra barata de um continente para outro em condições tão desumanas quanto os navios negreiros. O artista plástico Bruno Pedrosa, que vive na Itália, disse-me alguns meses passados que o nível de desumanidade tinha chegado ao ponto em que os tais agentes punham as pessoas em pequenos barcos, orientavam o rumo do leme em sentido do continente europeu e diziam: é por aí. E os barcos, sem piloto, levavam os desesperados de mar a dentro.

Mas em seguida, mudamos o rumo de nossas posições. A chamada à responsabilidade dos governos Europeus sobre o assunto representa o que exatamente? Aumento da vigilância aérea, marítima e por satélites e radares sobre o mediterrâneo? Ampliação de uma rede de informação secreta nos países africanos para detectar os movimentos? A rápida devolução dos migrantes? A perseguição estilo CIA da raia miúda dos contrabandistas de gente?

Afinal vamos tender a ficar contra os piratas e ao mesmo tempo contra os governos? É contradição tremenda em nossos espíritos (uma ressalva: na televisão estas coisas só têm um lado e a posição se resume à condenação dos piratas e, por tabela, dos migrantes).  Mas o que efetivamente temos?

Temos um sistema econômico e político desigual. Fazedor de misérias e supressor de oportunidades. Além desta inerência, é um mundo que cresce numa velocidade descontrolada como fetiche consumista, onde as pessoas se tornam peças performáticas e vivem numa eterna incompletude diante das ofertas inatingíveis.

Segundo análises prospectivas, em 2020 apenas 1% da população mundial controlará mais riquezas do que 99% da população. Esta riqueza organizada em redes de influência carregará a história num sentido mecânico consumista e degradante. Dados da ONU estimam que de cinco pessoas no ano de 2050, quatro estariam vivendo em regiões com problemas de abastecimento de água. Isso sem contar com esgotamentos naturais, danos ambientais, desflorestamentos, poluição dos mares e do ar.

A questão energética será mais crítica do ponto de vista de sua distribuição do que de sua geração. Quem tem acesso às fotografias da terra à noite já pode observar, pela iluminação dos países, como esta distribuição é brutalmente desigual. Este modo de distribuição do lúmen produzido pelo trabalho humano é o molde plástico ao olhar de como a sociedade ultra-capitalista atual funciona.

A questão da desgraça no Mediterrâneo é uma questão de consciência política, de organização e mobilização, refletida com o conhecimento até agora adquirido pela humanidade para que se possa, com escala de danos mais reduzida, se transformar e superar o estágio atual do sistema econômico e político. Existem muitas formulações políticas dedicadas a compreender os fatos históricos e lhes dar uma condução racional, normalmente revolucionária.


Não acredito que a dimensão destas contradições possa ser resolvida pelo consumismo, uma vez que ele mesmo é parte daquelas contradições anteriormente apontadas (concentração de riquezas, esgotamento da natureza, desigualdade e conflitos). 

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