quarta-feira, 1 de julho de 2015

O "CONTADOR DE HISTÓRIAS" - Demóstenes Ribeiro (*)

Ele estava na fila de emprego e, apesar dos seus cabelos brancos, o reconheci de imediato. Preto e baixinho, mas ainda esbelto e musculoso como o conheci na infância. Lembrei do tempo em que ele recolhia o lixo da cidade, numa carroça puxada a burro, encantava a meninada com estórias fantasiosas e tirava cocos de onde ninguém tinha coragem.

Ao anoitecer, deslumbrava a gente com a saga do pavão misterioso, as desventuras de Camões e as travessuras picantes de Bocage. Outras vezes, era a aparição do monstro Labatut, o tempo do rei e do império.

Para ter mais veracidade, suas estórias eram herança de família, contadas pelo tetravô, escravo alforriado, que conheceu D. João VI e participou de beija-mãos no Paço Imperial. O monarca seria um tipo afrescalhado, imundo e medroso de trovoadas. E a rainha, Carlota Joaquina, feia e maluca, lhe enchia de chifres, embora também não tomasse banho.

Então lembrei-me de uma eleição acirradíssima, onde a UDN, controlando o juiz e o delegado, impediu a oposição de instalar auto-falante em qualquer prédio da cidade. A proibição, no entanto, esqueceu os coqueiros e ele foi chamado para colocar o transmissor no ponto mais alto da cidade. Com o aparelho e fios amarrados à cintura, escalou o coqueiro e instalou o equipamento. Assim, sem infringir a lei e deixando os adversários estupefatos, a “Voz do Cariri” entrou no ar e conduziu o PSD para a vitória.

Depois, já na meia-idade, ele se aproximou da Igreja. Sonhava ser da “Irmandade do Santíssimo” e participou de procissões. Num “Corpus Christi”, vestiu um terno branco usado e folgado, porem com boa figura sob a opa vermelha da irmandade. À frente do palio, contrito, mas desajeitado, destoava dos irmãos ao conduzir o castiçal e a vela inclinados, quando deveriam estar na vertical. Ao ver a cena, dona Lídia, na calçada, não perdoou o gritou: “apruma a vara, Zé” ! A procissão inteira interrompeu “...queremos Deus, que é o nosso rei...” e caiu na gargalhada. Monsenhor Feitosa, zangado, por pouco não excomungou todo o mundo e derrubou a custódia.

Por fim, as lembranças pararam, bati em seu ombro e perguntei: e aí, ainda contando estórias ? - “Que nada” respondeu sexagenário e triste, sem a vivacidade de outrora. – “Com a terceirização, fui jogado na rua. Minha esperança agora é esse emprego de coveiro, aqui no cemitério. Parece que vai dar certo. Afinal, eu entendo de lixo e o que não falta em minha vida é alma penada”.


(*) Demóstenes Ribeiro (médico cardiologista, filho de Missão Velha e atualmente radicado em Fortaleza, em plena atividade) 

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