segunda-feira, 4 de julho de 2016

Quase uma vez, o Japão - (Demóstenes Ribeiro – Médico Cardiologista)

Na cadeira de balanço, iniciando a sesta e de olhos semicerrados, um riso silencioso invadiu o rosto do meu avô.
- “Rindo do que, vovô?
- Das mulheres, sempre as mulheres.
- Mas não há mulher nenhuma aqui.
- Como nenhuma, elas estão sempre presentes!
- Mas eu continuo sem enxergá-las, o senhor enlouqueceu?
- O espírito feminino é onipresente.
- Onipresente, só Deus.
- Ora, Deus e as mulheres, não percebe?
- O senhor não está legal, tomou seus remédios direito?
- Estou ótimo e lembrei de uma delas. Foi engraçado e assustador.
- Uma delas... O senhor e sua mania de grandeza.
- Mais respeito com o velho. Ainda vai aprender muito se tiver a humildade em me escutar.
- Qual é a história de hoje?
- Muitos lugares, muitas mulheres, o mistério feminino a desvendar. Naveguei
muitos mares... Fossem calmos ou revoltos, desbravei!
- Mentiroso!
- Mais respeito com o seu avô, eu nunca faltei com o meu dever!
- Fala então, garanhão!
- Atravessei o mundo inteiro, mas faltava completar uma missão.
- Faltava o quê, vovô?
- O Oriente, o extremo Oriente, a terra do sol nascente... Quando cheguei a São
Paulo, não saía da minha cabeça o inacessível Japão.
- E daí?
- Daí, a espera paciente, não forcei a natureza das coisas. No entanto, nem o mais sincero e esperançoso amor escapa ao sobrenatural.
- Como assim?
- Era uma sansei delicada. Nariz afilado, traços ligeiramente ocidentais. A alma-
gêmea. Quem sabe em vidas passadas eu não fora um samurai. De origem humilde, alguma semelhança havia entre o drama nordestino e a saga dos seus avós. E, sem sair de São Paulo, fui lhe mostrando o sertão. No Cantinho do Nordeste, ela riu com as emboladas e os versos de cordel. Dançou xaxado e forró. Queria saber de histórias, Padre Cícero, Lampião... Apaixonados, meu filho, até haver o pior.
- O que aconteceu, vovô?
- Num feriado, tivemos o dia inteiro e, após uma manhã no Ibirapuera, fomos ao Restaurante Oxumaré. Comida baiana, ela nunca havia provado. Cansada de sushis e sashimis, foi ao self-service e ficou deslumbrada. Iniciou com uma batida de pitanga, comeu um acarajé, outra batida de cajá. Moqueca de peixe, bobó de camarão, adorou sarapatel, repetiu o vatapá. Carne-seca com purê de aipim. Avançou no caruru. Serviu-se de tudo um pouco. Findou com baba-de-moça e cocada de mamão. Já era tardinha, quando saímos pra casa, e um orixá esfomeado, ela parecia incorporar.
- Qual a tragédia, afinal?
- À noite, iniciando o amor, conhaque, calabresa e amendoim. Eu fiquei desconfiado, pois ela queria sempre mais e a seguir veio o desastre.
- Conta logo, vovô!
- De repente, a japonesinha saltou na cama, deitou de bruços e gritou feito uma louca: agora, cabra da peste, vais conhecer o Japão! Seguiu-se uma explosão fétida e furiosa, um pum atômico, mais de mil megatons, Hiroshima e Nagasaki. Quase pedindo socorro, abri portas e janelas, sacudi os lençóis e esvaziei o bom-ar até que aquele Exu presepeiro fosse embora.
- Uma hecatombe, vovô!
- Cabeça baixa e olhos úmidos, ela repetia desculpe. Sayonara, sayonara, com a timidez ancestral. Foi um adeus definitivo. Maldita comida baiana! Nem conheci o Oriente e casei com a sua avó!”
Tudo verdade. Vovô nunca mentiu pra mim.






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