segunda-feira, 28 de novembro de 2016

MISSA DO GALO - Dr. Demóstenes Ribeiro

 
A minha alma canta e eu vejo o Rio de Janeiro. Estou morrendo de saudade, faz um domingo lindo, o sol é magnífico e a festa, universal. Saio do Cosme Velho e chego ao centro. Paro em frente à Academia, relembro patronos e colegas.

Como aceitar o suicídio do Pompéia? Ele escreveu o Ateneu, foi abolicionista e lutou pela república. Ainda era ainda moço e forte. Um Natal, um tiro no coração, silêncio e nunca mais. E o Gonçalves Dias? Tragado pelas ondas invejosas e não podendo dormir no chão amado, deixou a Canção do Exílio em todos nós.

Um dia, Castro Alves me procurou, recomendado pelo Alencar. Deu-me imensa alegria conhecer o poeta e sentir a força do gênio que iria cantar a liberdade, enfrentando a injustiça e a escravidão. Aliás, 13 de maio de 1888, um domingo, foi o único delírio popular de que me lembro de ter visto.
Agora é moda falar mal do Alencar, mas ele fez um retrato do Brasil como ninguém mais. Eu, quase um adolescente, o conheci de perto. Nesse tempo ele ainda ria. Depois, escrevi o prefácio de Iracema e me convenci de que nem tudo passa sobre a terra. José de Alencar é o meu patrono e a banalidade da morte jamais apagará aquele sol.

Olho essa estátua, recordo as palavras de Nabuco na sessão inaugural da Academia e as do Ruy Barbosa quando parti desse chão. Gostei muito do discurso do Ruy, mas, ao contrário de Nabuco, não éramos íntimos, tínhamos temperamentos diferentes, faltou-nos a prática necessária à amizade.

Não encontro a Livraria Garnier e na Rua do Ouvidor a confusão é geral. Sigo adiante, me emociono com um bater de sinos, a igreja da Glória me faz menino outra vez, mas a praia do Flamengo mudou demais. Muito mar e muito tempo, mar revolto, suicídio do Escobar... No calçadão, muita gente andando com cachorros. Aqui, Quincas Borba retomaria fumos de fidalgo e correria feliz.

Marcela e Virgília, Sofia e Flora, Sancha e Fidélia... Elas não eram para um tipo ciumento e permita-me cantar minhas saudades. Em direção à Ipanema, uma garota me lembrou Capitu. Não tirei os olhos dos seus quatorze anos, meu coração agitado, tempo infinito e breve até Carolina restituir-me o equilíbrio e a paz.

Saudades de mim mesmo... Rio de ontem e de sempre, lembranças e fantasias de um bruxo, ex-interno da Casa Verde, paciente do Simão Bacamarte. Dizem que Memórias Póstumas de Brás Cubas é um dos livros prediletos do Woody Allen, mas até hoje eu não sei se Capitu traiu o Bentinho ou se era ele quem desejava ardentemente o Escobar. Consultarei a cartomante – cedo ou tarde, ela descobrirá.

Por fim, lembrei do Astrojildo Pereira. Eu já estava partindo, quando um rapazinho, dizendo-se grande admirador, ajoelhou-se ao lado do meu leito, beijou-me a mão e saiu sem se identificar. Tempos depois ele seria um dos fundadores do Partido Comunista do Brasil. Euclides, que presenciou aquela cena, a descreveu numa crônica. 

O Natal mudou, a noite caiu de todo e se não me apresso, perco a Missa do Galo. Ah, quase me esqueço, mas o Mário de Alencar não era meu filho: não transmiti a ninguém o legado da nossa miséria. 

Dr. Demóstenes Ribeiro (Cardiologista - Fortaleza-CE)

terça-feira, 22 de novembro de 2016

BANCOS DE "SEGUNDA LINHA" - José Nílton Mariano Saraiva

BANCOS DE “SEGUNDA LINHA” - José Nílton Mariano Saraiva

Não é possível que, principalmente os militantes do serviço público federal (aprovados em rigorosos concursos) e que ainda não foram vitimados pelo Mal de Alzheimer, hajam se surpreendido com o “anúncio fúnebre” do sem povo, sem voto e sem moral (Michel Temer), no tocante ao progressivo esvaziamento do Banco do Brasil (e demais bancos públicos), visando sua posterior extinção/privatização.

Afinal, na fase crepuscular da década de 90, o Governo Tucano (Fernando Henrique Cardoso), via Ministério da Fazenda (Pedro Sampaio Malan), firmou um Acordo Stand-By com o Fundo Monetário Internacional, onde, em troca de migalhas que teoricamente livraria o Brasil da falência absoluta, se comprometeu a entregar à iniciativa privada tudo que contribuísse para que o patrimônio nacional fosse pulverizado vapt-vupt (não houve jeito, perdemos parte expressiva do patrimônio e tivemos que se ajoelhar mais duas vezes, posteriormente).

Abaixo, só pra refrescar a memória, a prova do crime:

MEMORANDO DE POLÍTICA ECONÔMICA (de 08.03.1999), ENCAMINHADO AO FMI PELO MINISTÉRIO DA FAZENDA DO GOVERNO FHC (ACORDO STAND-BY)

Com determinação o governo dará continuidade à sua política de modernização e redução do papel dos bancos públicos na economia. O Banco Meridional uma instituição federal foi privatizado 1998 e em 1999 o sexto maior banco brasileiro, o BANESPA, agora sob nova administração federal será privatizado. Ademais, o governo solicitou à comissão de alto nível encarregada do exame dos demais bancos estatais (Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, BNDES, BNB e BASA) a apresentação até o final de outubro de 1999 de recomendações sobre o papel futuro dessas instituições, tratando de questões como possíveis alienações de participações nessas instituições, fusões, vendas de componentes estratégicos ou transformações em agências de desenvolvimento ou bancos de segunda linha. Essas recomendações serão analisadas e decisões serão tomadas pelo Governo antes do final do ano sendo que as determinações serão implementadas no decorrer do ano 2000. O Governo já se decidiu sobre a privatização da administradora de ativos afiliadas ao Banco do Brasil (BB) e do Instituto de Resseguros do Brasil (IRB)” (ipsis litteris).
************************
Apesar da pressa, não deu tempo de “doar” tudo, face à defesa da sociedade e, posteriormente, com a assunção de Lula da Silva, quando o estado brasileiro foi retomado, tanto que de devedor do FMI passamos a credor daquele famigerado Fundo, de par com a adoção de uma política exterior independente, onde novas e poderosas parcerias foram estabelecidas (China, Mercosul, África e por aí vai). E a partir daí o Brasil ganhou o respeito internacional.

Vida que segue (e suas surpresas), fato é que hoje, após o “golpe” midiático, parlamentar, jurídico perpetrado, voltamos a uma fase de incertezas e pessimismo, principalmente ante a tenebrosa constatação que, embora fora do poder formalmente, a “tucanalhada” mais do que nunca se acha presente, porquanto o “gagá” enrolador que se acha Ministro da Fazenda (Henrique Meirelles) incapaz de uma ideia original, adotou definitivamente o modo/pauta tucano de ser e agir.

Assistir a tudo isso nos traz uma pesarosa e triste sensação de “DÉJÀ VU" (o equivalente popular a "eu já vi esse filme"), cuja medicação exige luta e enfrentamento, até porque ante um governo ilegítimo.


Mas, será que os famosos “coxinhas” que integram o serviço público federal (principalmente funcionários do BB, CAIXA, BNDES, BNB e BASA) que se esgoelaram, escreveram artigos e bateram panelas exigindo o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, estão satisfeitos com o papelão que fizeram e com o “presente” lhes está oferecendo o governo em termos de futuro ??? Teriam hombridade de ir às ruas defender seu emprego, o sustento da sua família ???

terça-feira, 1 de novembro de 2016

O FATOR "ELASTICIDADE" - José Nílton Mariano Saraiva

Na perspectiva de que possam influenciar decisivamente na hora do voto, entra ano e sai ano são recorrentes as reclamações contra a divulgação de pesquisas às vésperas da eleição. Se verdadeira ou não tal tese, contestá-la de verdade (judicialmente) parece que ainda não tentaram. Tanto que até agora ninguém conseguia obstar que os institutos patrocinadores (regiamente pagos) as divulguem a seu bel prazer.


Analisando-as (as pesquisas) racionalmente, o que se constata é que, embora às vezes apareçam divergências gritantes na totalidade dos números apurados pelos diversos institutos, uma variável permanece intocável e permanente em todas elas, a servir de poderoso handicap na hora da cobrança da fatura a quem as paga: uma tal “margem de erro” (para mais ou para menos), calculada dentro de uma certa “elasticidade” (percentual).


Na verdade, trata-se de um artifício estatístico que pode ser usado para, no caso específico de eleições, preventivamente “acomodar” os números apurados em relação àqueles que emergirão das urnas; ou, em português mais claro, uma conveniente “manobra numérica”, ancorada nessa tal “elasticidade” (percentual), de sorte que os números finais da eleição findem “batendo” com os vendidos a quem paga. Em assim sendo, quanto maior o número de eleitores, maior a “elasticidade” percentual usada, objetivando que não surjam surpresas desagradáveis, a posteriori. O “padrão”, recorrentemente usado para os embates políticos, é de magnânimos e generosos 3,0%, para baixo ou para cima (ou 6,0% entre os dois extremos, ao final).


Visando melhor entender essa tal “elasticidade”, vejamos, abaixo, os números dos dois institutos de pesquisas contratados na eleição de Fortaleza, recém-finda:


no Ibope (52,0 x 48,0), o candidato 01 largaria com 52,0%, que poderiam transformar-se em 55,0% para cima ou 49,0% para baixo; já o candidato 02 largaria com 48,0%, que poderiam transformar-se em 51,0% para cima ou 45,0% para baixo; e como aqui, em algum ponto da curva se encontrariam, teríamos o tal “empate técnico” (ou eleição não decidida, necessitando segundo turno);


no Data Folha (56,0 x 44,0), o candidato 01 largaria com 56,0%, que poderiam transformar-se em 59,0% para cima ou 53,0% para baixo; já o candidato 02 largaria com 44,0%, que poderiam transformar-se em 47,0% para cima ou 41,0% para baixo; aqui, não haveria chance de “empate técnico” e o candidato 01 poderia ser sagrado antecipadamente (não necessitando segundo turno).


Para alguns, o alargamento de uma presumível margem de acerto, propiciada pela ampliação do percentual da “elasticidade”, poderia ser considerada “esperteza” dos pesquisadores, já que lhes garantiria uma margem de segurança confortável. Assim, como em termos percentuais o resultado final da eleição de Fortaleza foi de 53,57% para o candidato 01 e 46,43% para o candidato 02, graças à generosa “elasticidade” de 3,0% de margem de erro o Ibope acertou para o candidato 01 dentro da margem para cima, e também no candidato 02, na margem para baixo; já o Data Folha inversamente acertou na margem de erro para baixo do candidato 01 e na margem para cima do candidato 02.


Há que se destacar que numa eleição com um universo eleitoral de 1.692.657 (como o foi a de Fortaleza) a tal margem de erro (para cima ou para baixo), representa uma “folga” em torno de 101.556 votantes (50.778 para cima e 50.778 para baixo). E como a “vantagem” do candidato 01 para o candidato 02 foi de exatos 90.396 votos, constata-se que situou-se dentro da tal “margem de erro”, propiciada pelo ampliado índice de “elasticidade” usado.


Em suma, graças ao fator “elasticidade”, os dois institutos erraram, mas… acertaram, ao final.




JUDEU EM SÃO PAULO - DR.DEMÓSTENES RIBEIRO

Aquele dezembro nunca mais sairia de mim. Ao completar dezoito anos e conseguir os documentos, eu deveria enfrentar o mundo. O arraial e a agricultura não me mereciam mais. Desde o tempo do meu avô era o Amazonas, o Maranhão ou São Paulo. Mas, se o Tio Fausto findou-se nos seringais e se o meu pai foi pro Maranhão e a malária o enterrou por lá, a saída era São Paulo.

- Viu como o Galdino vive feliz? Gordo, corado, roupa bonita e fala diferente, nem parece o matuto que saiu daqui. Trabalha numa usina de açúcar e álcool em Ribeirão Preto, ele certamente o ajudará.

Salgueiro, Conquista, Valadares, Taubaté, São Paulo... A sorte, o sul, a estrada, quase três dias depois, o semi-leito chegava a Ribeirão e encontrei o Galdino. Ele era chefe de turma, controlava os bóias-frias e logo eu estava entre eles, morando no barracão e cortando cana de sol a sol. Meu Deus, a vida no arraial era bem melhor.
Lembrei do Luiz Marcondes, acertei as contas no armazém e fugi prá São Paulo. Diziam que ele trabalhava num banco e morava em Santo Amaro. Fiquei surpreso, pois Lula morava num quartinho com outros baianos, de dia dormia num colchonete e à noite, na Avenida Paulista, fazia faxina de escritório. Morreu ingênuo e bom, pra sempre um escravo no norte e no sul.

Desempregado, eu quase me desespero até conseguir ser auxiliar de limpeza num prédio suspeito do Largo do Arouche. Anos depois, era o porteiro da noite. À tarde, antes de entrar no trabalho, sob a garoa, vagava pela Praça da República, lia cordel e ouvia Jackson do Pandeiro em lojas de discos na Ipiranga e na Avenida São João. Num desses dias, assisti o Joelma pegar fogo e o desespero das pessoas em chamas saltando para a morte.

Dormia pouco e voltei a estudar. Sara Levy, professora de História, se impressionou com a minha memória, o meu interesse pela leitura e o meu espírito inquieto. Aos poucos, terminei o segundo grau. Ela me achou parecido com um vizinho, me arranjou emprego de frentista no posto de gasolina do Isaac e me indicou uma pensão. Hoje moro no Bom Retiro e me sinto à vontade no bairro.

Sara é gordinha, ruiva, míope e num domingo me surpreendeu convidando-me a almoçar com seus pais. O seu pai me achou parecido com um parente distante e disse que no Nordeste houve miscigenação judaica. Ele me ensinou que no Brasil o descobrimento e a colonização devem muito aos cristãos-novos e que naquele tempo os judeus eram a elite intelectual da península ibérica. Com a perseguição da inquisição, Portugal e Espanha nunca mais se acertaram.

Ela me emprestou vários livros e o que rola entre nós não é somente amizade. Iniciei um curso de judaísmo e agora sei que os hebreus criaram o monoteísmo, aboliram o sacrifício humano como tributo aos deuses e que os dez mandamentos formam a base da civilização ocidental.

O Senhor não se esqueceu de mim. Hoje sou chefe dos frentistas e ando muito entusiasmado. Aos poucos vou me descobrindo. Fiz circuncisão, não trabalho aos sábados e frequento regularmente a sinagoga. O rabino aguarda o meu teste de DNA. Se revelar algum traço israelita, me casarei com Sara, e seu Moisés vai dar uma grande festa.

Porém, meu sonho mesmo é abrir uma sinagoga em Juazeiro e voltar pra minha terra. Aqui, quase não saio, quase não tenho amigos - mais uma rês desgarrada na multidão boiada caminhando a esmo.

Agora, o tempo inteiro, imagino a cara da minha mãe quando eu voltar pro Juá, com a barba batendo no peito, o quipá na cabeça e a estrela de Davi tatuada no braço: Vixe! Sei que os romeiros vão ficar furiosos, mas eu não sou um perdedor: Shalom!

DR. DEMÓSTENES RIBEIRO (CARDIOLOGISTA)