terça-feira, 15 de janeiro de 2019

AS CIDADES VIVIDAS – JUAZEIRO DO NORTE

O viajante para chegar a Juazeiro do Norte deve incorporar-se às léguas tiranas dos sertões, nos passos das almas em busca de salvação. Um companheiro de jornada, falava, com fervor, da qualidade das cunhas que fixavam as enxadas até nas covas dos legumes plantados em terreno pedregoso.

Dizia ele: é mais importante do que este monte de carne e osso, pois é com ela que alimento o arranjo. É mais importante do que tudo acontecido desde que separaram-me do cordão umbilical que me ligavam às águas da minha mãe. A cunha da enxada bem ajustada é como o palácio de um rei.

Juazeiro é um grande lago de gente, que recebe tributários da totalidade da rosa dos ventos. Na carroceria do “pau-de-arara”, embaixo da lona enfornada, na poeira batida pelo calcanhar da corrolepe, ajustando a carga do jumento, no passo das ladainhas e das cantigas de peregrinos.

E como uma cidade, cuja natureza são os moradores e moradias, pode ser um lago pondo em risco as posses, onde todos vão do modo como podem, do jeito que a fé lhe conduz? Estes são os segredos de Roma, de Meca e Medina. Tudo é igual em trabalho e vida, o que os distingue são as quantidades em atribuições de valor. 

Deste o Arco dos Salesianos, os segredos, os mistérios da fé, os enigmas, os caprichos do destino, os desfechos de vida e morte, na insustentável existência, se fundem nas estações suplicantes e desenhadas como os benjamins da Praça Padre Cícero.
Por onde passe, seja na Igreja dos Salesianos, no Santuário dos Franciscanos, na Basílica Menor de Nossa Senhora das Dores, na capela de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro e na subida do Horto, tudo sustenta as multidões que desembocam naquele lago com face de eternidade.

Sei bem que nada sou e nada levo deste mundo. Ninguém me conhece, não tenho nome e nem parentes. Sigo os preceitos da fé dos meus antepassados, aceitando o destino, mesmo escrito por outras mãos que não as próprias. Por isso este lago de gente, no qual sou uma gota, não se rebenta e extravasa. Pelos preceitos e destinos assinalados.  

Hoje levo um terço para Das Dores, um retrato do meu Padim, um pano para Zabé, levo porque é esta mercadoria sagrada que tudo acalma, tudo acomoda, a tudo explica. Acalma as dores do sol consumindo, em chama alta, o meu estoque de tempo. Acomoda o sangue das balas da tocaia, explica porque deixei minha roça no tempo de bonecar. A menina negou-se ao filho do patrão.

Como não tenho outro valor de corpo e alma, ajoelho-me aos pés deste terço, deste retrato e deste pano como se fossem tudo o que resta de valor na vida. E assim ouvindo aquele com quem andei nas estradas de chegada, fomos deixando Juazeiro do Norte pelas mesmas rotas. Levando um desejo de um dia ser tão igual no céu quanto não somos na terra.

Juazeiro do Norte, a cidade onde a voz mais aguda do destino se manifesta, numa fé cantante que sinaliza a dor inteiriça, enquanto a terra não for o amor e a irmandade prometida há dois mil anos. 

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