Deus
e o Diabo na terra do Pré-Sal –
Reginaldo
Moraes
O
Brasil é um país cristão. É o que dizem. Quando eu nasci
determinaram que eu era católico.
Um padre jogou aquela agua benta, disse umas coisas em latim, a
cerimônia toda. Não me recusei e isso pode ter sido meu primeiro
grande erro. No máximo teria engatado algum choro. Dizem que foi
curto.
A
marcha da fé teria outras etapas. Para completar a educação
cristã, todo domingo tinha missa. O
que era quase um inferno (Deus me perdoe!). Afinal, exigia que uma
criança ficasse pregada naqueles bancos quase uma hora, naquele
ambiente lúgubre da igreja, com perfume enjoativo de velas e
incenso. Era um tal de
senta, levanta, ajoelha. E repetir umas frases sem significado,
respondendo a um cara que fala umas coisas em língua que ninguém
entende. Que sufoco! O truque era atrasar e chegar apenas
um minuto antes da tal da sagração da hóstia. A missa ficava
“valendo” e se ganhava uns quinze a vinte minutos de tortura a
menos.
Mas
aí vem a escola e as aulas de catecismo. Na
escola pública, sim, o que era quase um monopólio dos católicos.
Até que havia coisas interessantes, umas estórias da vida de Jesus
eram mesmo divertidas. Mas decorar as
quatro orações era um porre. Salve Rainha. Padre Nosso. Ave Maria.
Credo. Tudo
para preparar a “primeira comunhão”, o rito em que o católico
imposto confirma “VOLUNTARIAMENTE”
sua adesão ao plano de saúde vitalício.
Aliás, mais do que vitalício, valia por duas vidas, a passageira,
do vale de lágrimas, e aquela, mais duradora, do suposto vale das
delícias. Do pó vieste, ao pó voltarás, porque este mundo não é
teu lar.
Primeira
comunhão parece meio que uma versão espiritual do exame de
colonoscopia. Dois dias terríveis
para um momento que é quase nada. Na minha época, que já vai
longe, a gente fazia a confissão no sábado, começo da tarde. Era
o procedimento da limpeza geral. Confessa os pecados, zera o
taxímetro, paga as penitências rezando umas trinta orações.
Aí começava o drama. Contavam às crianças, com requintes de
maldade, que era preciso ficar limpo até a hora da hóstia, caso
contrário ela iria verter sangue – ou você iria engasgar com tal
força que alguém tinha que dar um chute no seu traseiro. Esta
última versão parece que era uma corruptela da primeira, mais
adequada ao espirito sombrio da igreja.
Ficar
limpo. Eis a questão. Feita a confissão, você não pode mais pecar
até a hora da comunhão. Beleza, só que nos martelavam que se peca
por pensamentos, palavras e obras. Nada escapa da vigilância do Big
Father. Palavras e obras até que se consegue segurar. Por umas vinte
e quatro horas dá para aguentar. Mas… pensamentos? Se você bota
na cabeça que não pode pensar naquilo é justamente naquilo que vai
pensar. Até para lembrar que não deve pensar naquilo. Daí, na hora
de engolir a pastilha é fatal: você tem certeza de que vai
engasgar. Quando não acontece nada você começa a perder
a fé: consegui passar pela vigilância divina, então ela não é
grande coisa.
Superado
o obstáculo, quando você pensa que está livre, alguém mais
sádico, com ou sem batina, vai lhe avisar que tem mais pela frente.
Os sacramentos são sete e você passou por dois. Bom, nesta altura
do campeonato não me restou alternativa senão dizer que estava em
outra e que Ogun havia feito contato. Não era verdade, mas servia
como desculpa. Afinal, melhor dizer que tem outro deus do que dizer
que não tem nenhum. Porque hoje, como na era de John Locke, a
tolerância se aplica a todas as religiões, mas não àqueles que
não querem ter uma. Esses não pertencem à comunidade.
Ogun
serviu para me livrar das chamas do inferno ou, pelo menos, do olhar
desconfiado dos meus semelhantes tementes a Deus. Mas eu sabia que
era falso. E que, portanto, eu estaria, sem dúvida, nos braços de
Belzebu. Este, felizmente, reduziu os sacramentos a um único
procedimento purificador: girar como salsicha no braseiro.
Fazendo
as contas, talvez os sete sacramentos valham a pena. Vai que é assim
mesmo. Anos mais tarde li a tal aposta de Blaise Pascal. A conversa
do filósofo era malandra. O que você tem a perder? Diga que
acredita na existência de Deus e nas consequências desse fato
primordial. Se for mentira, você não perde nada. Se for verdade,
você ganha um paraíso. Só que… tem um truque na conversa mole.
Aceitar a chantagem de Pascal significa abrir mão de umas vodcas e
baseados, entre outros refrescos do vale de lágrimas. Recusar
significa aceitar a possibilidade de um fogaréu assando as partes.
Entendi
então como aquele Jesus simpático que protagonizava velhas
histórias, tinha sido transformado em um promotor de vendas. Um
gênio do marketing. Com apenas doze
vendedores-pracistas, conseguiu construir um império transnacional.
Vendendo esse bem (ou serviço?) que ninguém manuseia e, se não
receber, sequer pode reclamar ao Procon.
Feito
o balanço, fico pensando se não é preciso ser um pouco ateu para
não embarcar nesse cristianismo cínico. Jesus, como eu disse, me
parecia um cara boa-gente. Excelente
professor, explicava de modo simples idéias bastante complexas.
Corajoso, expulsava os vendilhões do tempo. Hoje,
os donos de templos preferem estórias vingativas do Velho
Testamento. E quando falam de Jesus é para transformá-lo em uma
caderneta de poupança ou fundo de investimento. Fico sem essa.