Cariri
Eu tinha um ar febril naquele dia. Mas nada que tivesse relação com algum tipo de inspiradora necessidade; aquela sacação de última hora, um por do sol do caralho em minha frente e eu perdendo as estribeiras.
Era febre mesmo. Quarenta graus.
Uma porra de um dente que resolveu se deteriorar mais ainda. E me causou uma dor horrenda, um puta abcesso. Há noites não dormia. Minha cara tava gigante; os olhos vermelhos e chumbados.
O consultório ficava num “centro comercial” pequeno, bem ao lado da velha igreja de Juazeiro da Bahia. Uns corredores estreitos estavam tomados de óticas, escritórios de contabilidade, médicos e algumas outras salas com profissionais de procedência pra lá de duvidosa – umas cartomantes e um tarólogo. E a tal dentista, que não estava lá.
Eu tava fodido. Não tinha o que fazer a não ser esperar. Isso significava mais sofrimento. E o incômodo de andar por ali com a cara inchada literalmente.
O que me restava era caminhar. Esperar a tal doutora. Foi então que eu me deparei com uma salinha minúscula. Ela destoava do resto cinzento, abafado, monótono.
Na porta, um pôster do Jim Morrison: os olhos do Xamã talhavam o ambiente carregado de tédio. Numa velha vitrola – daquelas que usavam pilhas – o Raul dava o toque. Dentro, livros. Muitos livros.
Como quem não quer nada, entrei. Ressabiado, duvidoso e desconfiado. Um leve e quase imperceptível cheiro de mofo tomava o lugar; os livros do Bakunin, do Rilke, dos beats, do Suassuna, arrumados em ordem alfabética; as revistas Animal numa cesta, jogadas; exalavam aquele ar característico de sebo.
Numa mesa do centro, o Hélio lia algo. E ele me recepcionou, numa boa.
Foi o começo.
Foi ali que eu vi o que iria dar uma guinada em minha vida – até então, algo morno e ensimesmado; mas já dava seus primeiros toques de ressurgimento. Uma revoada.
Eram os fanzines. Mas especificamente um: Séquiço Sacro era seu nome.
Era uma literatura feita na raça. Antes dessa onda “on line” – que também é do caralho, mas nos facilita a vida e amolece demais as coisas -, o que esses caras faziam era pela mais pura vontade de gritar. Mostrar ao mundo que havia vida furiosa e inteligente além dos formalismos boçais dos circuitos literários e dos sarauzinhos de merda. Eles digitavam os textos em velhas máquinas Olivetti e cortavam seus fragmentos de vida junto com recortes de jornais, quadrinhos, desenhos, ondas.
Eu lembro nitidamente das colagens. Lembro dos poemas do Uberdã, das ondas do Rafael Fel; dos toques curtos e certeiros do Kleber Matos e da incendiária poesia do Lupeu Lacerda.
Dali eu passei a conhecer um lado mais divertido do mundo. Sem eles, acho que seria mais um adorador do Augusto dos Anjos e estaria até hoje caminhando com roupas pretas e com um olharzinho tristonho.
Eu vi as mulheres de bunda grande que o Robert Crumb desenhava; as boas vindas de um texto do Murilo Mendes – pois entre os inéditos, referências a alguns dos primeiros a escancarar as portas da poesia feia com algum culhão. Entendi, de uma vez por todas, que escrever era algo que podia andar lado a lado com a vida.
Minhas velhas crenças foram para puta que pariu; prum ralo qualquer, que não me faz falta.
E eis que eles voltaram num blog pra lá de bacana. Hiperbólico, sempre atolado de coisas que valem a pena sacar. O CaririCult nada mais é que uma versão melhorada; a loucura finalmente “on line”.
Eles podem se dar ao luxo de citar ao Hilda Hilst e falar de cubanas lindas que desfilam em festas nacionais dos charutos Havana. Podem copiar textos sobre literatura, catar fotos em outros lugares, numa pirataria lúdica.
Eles podem até citar o Whitmam, numa boa.
Eu até que poderia fingir que não era comigo. E nada escrever. Mas acho foda ter esses sujeitos que me abriram algumas portas – capitaneados pelo Lupeu, o único do grupo com quem consegui dividir algumas cervejas, cigarros, noites alucinadas e outras ondas nem tão corretas assim – aqui e não deixar claro de onde vieram minhas influências primárias; eles deram o chute na porta.
Depois disso, as cervejas se tornaram mais companheiras, os vinhos Dom Bosco se tornaram algum tipo de abençoada bebida e os livros foram devorados com legítima vontade de mudar o rumo das coisas.
Postado por Gustavo Rios (gustavosilvassa@gmail.com)
Eis mais um guerreiro da contemporânea Nação Cariri
ResponderExcluirSeparado que foi pela cissiparidade
Que gerou muitas tribos por esses vales afora
Mais um da rapaziada que a arte
Sempre acaba trazendo para o seu ninho
Independente do lugar que tenha nascido
Seja sempre bem-vindo, my brother
Que texto, Seu lupa!
ResponderExcluirJá mandei convite pro teu amigo Auguto para se integrar à nossa revista eletrônica. Outro recado: onde estão as nossas mulheres? Precisamos delas no blog, cara!
Um grande abraço,