sábado, 26 de janeiro de 2008
A Chave
Herman Hesse, nascido na Alemanha em 1877, partiu deste mundo em 1962, aos 85 anos. Ele deixou uma vasta e sólida obra literária que o levou ao Nobel de literatura em 1946. No vendaval de mudanças dos anos 60, sua arte teve uma profunda sintonia com a geração libertária do pós-guerra. Romances como “Sidharta”, “O Lobo da Estepe” e “ O Jogo das Contas de Vidro”, tornaram-se verdadeiras bíblias dos hippyes, dos beats e dos estudantes. Lembrei-me de Hesse neste sábado que finaliza uma semana mais triste que as habituais, embora , estranhamente , preceda ao período momino. O que preenche uma vila, imantando-a de uma alma ? Os poetas, os loucos, os boêmios. Quem lhe forja no entanto o caráter e a personalidade são seus educadores. O professor tem nas mãos a possibilidade única de construir o futuro, de moldar os dias que virão. E ele não consegue isto ensinando. Ensinar é apenas uma pequena face do complexo polígono que é a educação. O verdadeiro mestre tem a divina capacidade de apertar os interruptores das habilidades e vocações dos seus alunos. Adolescentes na encruzilhada de suas vidas, ante todas as intempéries e vicissitudes do futuro que se lhes abre sensualmente à frente, de repente percebem, as placas de trânsito que sutil e anonimamente lhes vão sendo colocadas nos caminhos e veredas por seus mestres. Percebo claramente que se hoje exerço bem ou mal a Medicina devo isto a uma das minhas mestras do ensino médio. Pensei tantas e tantas vezes em seguir outras carreiras como : jornalista, engenheiro ou professor como meus pais. Devo o médico que sou nos dias atuais à professora Ivone Pequeno que me abriu os horizontes encantadores da Biologia e terminou por me levar a seguir os rumos da Saúde. Pois bem, Hesse veio-me à mente por uma das suas mais famosas frases e que tão perfeita e visionariamente explica a verdadeira arte que é ensinar : “Nada lhe posso dar que já não exista em você mesmo. Não posso abrir-lhe outro mundo de imagens, além daquele que há em sua própria alma. Nada lhe posso dar a não ser a oportunidade, o impulso, a chave. Eu o ajudarei a tornar visível o seu próprio mundo, e isso é tudo.”
Herman Hesse, hoje injustamente esquecido, renasceu no meu espírito quando , com toda consternação deste mundo, observamos o vôo de pássaro do querido professor Aguinelo Damasceno. Todos que o tiveram como mestre se recordam das mais fortes facetas da sua personalidade. Organizadíssimo, preparava as aulas com um esmero inimaginável. Tinha mapa de classe, numa época em que sequer se havia pensado nesta geografia pedagógica. Comprometido com sua árdua profissão, nenhum aluno seu consegue registrar uma única aula vaga do mestre e até mesmo um simples atraso. Trabalhava na escola pública com um vigor e uma determinação que não se vê nem nos colégios pagos. Além de tudo mostrava-se sincero ao extremo com seus pupilos, qualquer questão que por acaso não tivesse uma resposta pronta na hora, simplesmente informava da impossibilidade de solucioná-la naquele momento , mas na próxima aula traria a correta resposta à pendência, o que cumpria de forma britânica. Talvez por isto mesmo fosse tão respeitado e estimado por todos seus discípulos. Conseguia de forma doce e cordial ter a necessária autoridade sobre hostes de jovens acicatados pelos hormônios da adolescência, sem ter necessidade, em nenhum momento, de se fazer autoritário. Muitos engenheiros cratenses hoje despertaram para arte pelas mãos sábias do professor Aguinelo Damasceno. Ele envelheceu com a placidez beneditina dos sábios e soube com a mesma sapiência com que colheu os opimos frutos da juventude, juntar as folhas ressequidas da vida e com elas fazer o fogo que veio arrefecer o frio inverno da velhice. Talvez a mais duradoura imagem que nos fique do professor Aguinelo seja justamente o da pasta maravilhosa que trazia para todas as aulas. Parecia a cartola de um mágico e ali colecionava um sem número de utensílios. Alguém se acidentava , ele sacava esparadrapo e gaze. A cadeira de alguém quebrava, o professor tirava da pasta mágica martelo, parafuso e chave de fenda. A luz da sala queimava, ele tirava uma outra da bolsa encantada. Para os roucos : pastilhas; para os assanhados: pentes e grampos; para os famintos : frutas e biscoitos; para os nauseados o plasil; para as dores de barriga: constipantes. O mestre sequer percebia que suas artes de Mandrake iam bem além dos simples utensílios e ferramentas. Dali de dentro ele tirava as chaves que abriram muitos e muitos caminhos e luzes que iluminaram o mundo de tantos. Ele conseguiu tornar nítidas e visíveis as mais coloridas imagens que existiam na alma de um sem número de discípulos. Seguindo os preceitos de Hesse, o professor Aguinelo exerceu suas artes de ilusionista e sem que ninguém se apercebesse foi pouco a pouco nos dando aquilo que havia de melhor em cada um de nós. O mundo fica mais pobre de perspectivas e ilusões quando agora se fecha o zíper da sua pasta miraculosa.
J. Flávio Vieira
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