A favela das velas
Juazeiro é uma cidade muito engraçada, cheia de piadas. Muitos não entendem seu senso de humor trágico. Definitivamente a culpa não é dela. Ela até que se esforça para ser entendida através de manifestações óbvias. Mas, se ninguém ri de suas anedotas, ela ri da gente, com sua gargalhada sonora e sua boca socialmente banguela. A favela que cresce nos arredores da Matriz de Nossa Senhora das Dores é uma de suas piadas sujas.
Quando uma quenga de pouco mais de vinte anos, usando mini-saia apertada, quebrando o buxo na canela, exibe a sua tabela de preços através do vermelho néon do seu baton da avon, encostada numa estaca que segura o barraco, ouvindo Aviões do Forró num micro-som fanhoso, a cidade também exibe ali suas malícias e seus malefícios, frutos das oportunidades que ela oferta e dos oportunistas que a infestam.
São as duas faces de uma mesma moeda. Dinheiro esse que corre léguas tiranas dentro e fora dos muros da cidade, às vezes demagogicamente ostentado, às vezes sorrateiramente cultivado. Assim cresce a Juazeiro do Norte dos contrastes. Sendo que vez por outra o passado e o presente se encontram nas esquinas, nos porões e nas salas mais requintadas. E é aí que se percebe facilmente o cinismo patético dessa cidade. Padre Cícero veio para acabar com a promiscuidade do entreposto Tabuleiro Grande. O tempo passou, Juazeiro do Norte saiu do Tabuleiro, mas o Tabuleiro não saiu do Juazeiro do Norte.
Se nesse mesmo espaço geográfico, de um lado existe o mais simbólico templo de devoção e fé dos romeiros, em que entre uma oração e outra, esmolas generosas são ofertadas em forma do dízimo voluntário, do outro lado existe o templo da promiscuidade, erguido com o poder dos interesses escusos, com pregos, papelão, restos de madeira, palhas, flandres e descasos e descasos, em que entre uma cachaça e outra, esmolas generosas são ofertadas em forma de arame farpado para curral. É nesse espaço geográfico em que a multidão, em tempos de romaria, se divide e se multiplica.
De acordo com o filósofo alemão Walter Benjamim, “na multidão o que está abaixo do homem entra em relação com o que impera acima dele e é essa promiscuidade que engloba todas as outras”. Isso é a pura verdade. Vale ressaltar, que a multidão, em sua comédia humana, enquanto massa, se apresenta invisível socialmente, em torno da coisa comum que aquele aglomerado expressa, estão ocultos os interesses privados, quase impossíveis de serem detectados de imediato. No entanto, sob um olhar mais atento, os mecanismos dessa risada irônica da cidade, que ridiculariza qualquer convívio entre o sagrado e o profano, vêm à tona.
É difícil de se acreditar em falta de visão política, que não vislumbra uma cidade turística, além de romeira. Também é difícil de acreditar na máxima de que não se pode solucionar o problema da noite para o dia, uma vez que todos os outros santuários de grande fluxo turístico conseguiram, sendo Aparecida o maior exemplo disso. Entender a tolerância para a continuidade dessa favela como uma manobra do espírito humanitário, em que todos têm o direito de sobreviver de alguma forma, é tão infantil quanto acreditar na fada dos dentes. É claro que a cidade ri de toda essa inocência, através dos trejeitos dos seus travestis, com seus sexos e jóias falsas.
É bem mais fácil de acreditar em um jogo de interesses menores, do que na “imposição de uma mazela social sem fim, culpa da desigualdade”. A permissividade da prostituição, da falta de fiscalização sanitária e da ocupação indevida do espaço, tem uma causa óbvia, e que foge das limitações da administração pública. Esse curral não é só mantido pela troca de favores e pela compra de votos. Existe aí uma troca de interesses públicos e privados, que a cidade esconde debaixo do braço, para alguns, para outros, debaixo do sovaco. Tudo, na realidade, é uma questão de postura, conta piada quem pode e ri quem deve.
eu, oriundo do tabuleiro
ResponderExcluircom um tabuleiro de baiana na cabeça, digo: que puta retrato man. você tá passando de escritor, tá virando dissecador. muito bom lobisomem. muito bom.
Que texto legal ! O sagrado e o profano convivendo tão de pertinho.De um lado um mito sugado até ás últimas pelos vampiros de plantão. Até a igreja tão reticente inicialmente com o milagre, descobre o filão e afia os dentes. Do outro lado a vida escoa sheakespereanamente cheia de som e fúria.
ResponderExcluirValeu, caras<
ResponderExcluirThe Lupas, o caso tá sério, essa favela parece sapo, cê coloca ela pra fora de um lado e ela aparece de outro, valeu a lida.
Zé Flávio, a ironia maior é que é nos pés da matriz, não dá nem pra disfarçar, valeu a lida.
abraços
Marcos, valeu a crônica desse tempo louco! Poderia publicá-lo em um desses jornais por aí, rapaz! Estamos apodrecendo e nos perfumamos para que a fedentina não apareça. O Crato não é diferente, não. Aquela rua da Vala e o rio Grangeiro atestam nossa incapacidade de urbanóides: vivemos mergulhado na lama dos esgotos. A nossa princesa cagou e não limpou a bunda! E nos acostumamos com isso!
ResponderExcluirE a favela instalada na Pça da Sé, durante a noite?
ResponderExcluirMarcos, concordo com o que o cara falou aí acima, esse tipo de texto deveria ser publicado em um meio de circulação maior, pra não ficar restrito aos blogs. não que vá mudar alguma coisa, mas enfim...
ResponderExcluirmas eu sei que aí são outros 500, mesmo pq a grande maioria não costuma consumir informação nesse formato de texto, sem contar que sempre envolve alguma questão política. mas que seria uma boa seria...
por falar nisso, tu indica algum site de jornalismo com esse tipo de texto de opinião?
ResponderExcluirPois é Salitiel, e o que mais assusta é o tanto de gente que acha que não, que essa é mais uma questão de pose do que de fatos. Pior ainda são aqueles que enraivados dizem que só o que sabemos é criticar, sem apontar soluções, na tentativa de eximir a responsabilidade de quem é pago para fazer isso.
ResponderExcluirA mídia paga é foda, mandei para o DN, de propósito, e eles alegaram que estava fora do padrão, o que já esperava.
Pois então Rodrigo, a saída é essa mesma, a resistência da informação livre da blogosfera. Ela só não é mais forte ainda devido ao fato de muitos preferirem o anonimato, como bem analisou Walter Benjamim, daí as repercussões não acontecem como deveriam. Mas essa realidade já é a de outros países em que o uso da rede já está mais experimentado e escaldado.
abraços
Rodrigo, excistem mais blogs do que jornais. A folha de São Paulo tem seus colunistas bons, mas o acesdso é pago, como é o caso do Estadão e do Correio Brasiliense.
ResponderExcluirVocê também encontra em sítios de revistas, como por exemplo, a da Caros Amigos. O Overmundo também é legal, mas tem que garimpar, pois tem muita porcaria escrita junto.
vlw
Texto pesado doido! Lembremos do Chico Science. A cidade não para a cidade só cresce o de cima sobe e o de baixo desce. Estas últimas eleições deixaram bem claro que o Juazeiro é um Espaço extremamente disputado, e mantém fortes conexões com outros Espaços, que geograficamentem estão longe, mas economicamente e politicamente estão no entorno das Favelas e ao mesmo Tempo dentro delas!
ResponderExcluirSaudações Geopolíticas!
João Ludgero
Valeu Ludgero, e essa aproximação apontada por você, parece ser o modelo que impera nesse tipo de ocupação espacial, a invisibilidade da massa só legitima as atrocidades, pois ninguém tem rosto próprio e por isso, aparentemente, não pode ser responsabilizado.
ResponderExcluirParabéns pelo texto, Marcos.
ResponderExcluirEu o vi escrito no Blog do Crato e inicialmente ao ler, me veio um pensamento que muitos ainda não perceberam, uma espécie de afronta e um quase "subliminar" desdém à própria cidade de Juazeiro do Norte e sua dualidade dionisíaca. Pensei que iríamos ter uma enxurrada de manifestações contrárias ao texto, mas ele é sublime! No exato limite da provocação e da elegância. E Quem em sã consciência há de levantar-se contra uma verdade tão bendita ? Nem o Padre Cícero, em seu pomposo túmulo teria essa coragem, nem os romeiros capacidade, nem os pseudo-intelectuais de plantão que escreveram as biografias do embuste.
Dois Vivas a nós todos, ó bucaneiros dos tempos modernos!
Salve! Salve !
Dihelson Mendonça
A intenção, Dihelson, é provocar mesmo, fazer com que temas como esses sejam amplamente discutidos, pois eles são urgentes demais, o mesmo tanto que são ressurgentes. Valeu a lida irmão.
ResponderExcluirabraços
Eu tô ligado nas colunas da Folha, vejo de vez em quando a de G. Dimenstein e outras, e o acesso é livre.
ResponderExcluirEu sei que a internet é o reduto pq hj já é popular, virou o meio mais democrático e ao mesmo tempo anárquico que existe hj, burocracia quase zero, por isso que é massa. Mas é tudo muito fragmentado, individualizado demais, principalmente os blogs.
vlw
Sua provocação é por demais elegante, Marcos. Um ser Simpático.
ResponderExcluirNo meu alvoroço jornalístico e temperamento rebelde e deselegante, talvez eu escrevesse assim nas manchetes:
"Juazeiro - Retratos de um Sodoma Religiosa.Quem dá mais ?"
ou ainda:
"Juazeiro - Mercadores do Corpo e da Fé disputam espaços entre os grandes templos."
ou ainda:
"Prostitutas procuram arrancar esmolas em meio à romaria. Outras, vendem seu próprio corpo para isto."
Já pensou, uma manchete dessas no Diário do Nordeste? ahahahahah
Abração, Cara!
Parabéns!
Vamos fazer a gravação ainda nessa semana! 5 minutos seus serão suficientes...é bom que eu te mostro como a coisa está se desenvolvendo.
Falow!
É Rodrigo, fragmentado e descontínuo. Realmente a navegação útil, torna-se mais útil quando o navegante tem já algum tipo de informação, para que ele possa delinear o que é opinião e o que é fato. Mas é uma grande descoberta.
ResponderExcluirDihelson, suas palavras são gentis, esse é um projeto encomendado, "As faces de Juazeiro", para um site daqui, "O Miséria", mas, inexplicavelmente - hahahahahah - não publicaram a primeira face, mas como o Cariri provê espaços democráticos, como o Blog do Crato e o Cariricult, a gente posta assim mesmo. Vou continuar escrevendo essas faces.
Vamos sim, creio que esse projeto esteja muito massa, pois o pessoal envolvido é extremamente capaz, me avise o dia!! Pode ser aqui mesmo, nessa postagem.
abraços