sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Em Matozinho também chegou um falso padre...


UM BONÉ


-- Um boné !?
Certamente haverão de interrogar vocês com ar enigmático e decepcionado. E o leitor, de imediato, concluirá que isto só pode ser falta de alguma notícia mais interessante vinda de Matozinho. Um sujeito tentando tirar suco de língua de papagaio. Paciência ! Por favor não vire a página só por causa de um simples e insignificante boné. Esse talvez seja também uma espécie de anzol literário que tentará aguçar sua curiosidade e mantê-lo preso, na transparente linha da narrativa, desde o princípio mixuruca ,até o parágrafo final. Assim, pois, embarquemos nesta viagem.
Dias atrás, numa solenidade dessas de só se suportar sob anestesia etílica, lá estava eu com um boné xadrez, desses que os franceses gostam de usar no final da tarde, quando vão comprar o baguette. Sentia-me um Jacques Prévert reencarnado, em plena Matozinho, quando um amigo, me vendo com aquela indumentária sui-generis, partiu em minha direção e olhou a peça de vestimenta com olhar apaixonado, me perguntando onde a tinha comprado. Antes que inventasse uma mentira qualquer, para não dizer , simplesmente: -- No Braz ! , ele o arrancou da minha cabeça e procurou a etiqueta que deveria identificar a nobre procedência daquele meu apêndice craniano. Não encontrando nada que demonstrasse ser de uma fábrica famosa, mo devolveu e saiu com cara desenganada e ar reprovativo. Fiquei matutando com meu boné aquela atitude brusca e deselegante, quando despertei para a profundidade do ato que tinha vivenciado. Certo que a sociedade de consumo havia criado as "marcas" justamente para poder vender produtos de igual qualidade, por preços totalmente díspares, única e exclusivamente por pertencerem àquilo que se convencionou chamar : "griffe" . O problema é que incorporamos esses hábitos na nossa convivência humana. Interessa-nos , pouco, as qualidades espirituais dos homens. Priorizamos o continente em detrimento do conteúdo e aí passamos a rotular as pessoas, igualzinho como o comerciante faz no supermercado ( muitas vezes até mesmo o preço colocamos). Fulano de tal é ótima pessoa porque é de família importante; Joaquim é burro porque é preto ; Ingrid é uma desavergonhada porque é homossexual; Gabriela é uma santa porque só vive rezando; Marcos não presta porque é comunista.... e por aí vai; vamos colocando rótulos superficiais e encaminhando essas mercadorias para o pútrido mercado negro das relações humanas. Lá serão elas colocadas nas prateleiras , para o consumo de todos, na razão direta dos superficiais valores que, com toda parcialidade possível, a classificamos . Não é certamente por mero acaso que a bíblia dos colunistas sociais, a constituição que rege as boas maneiras de se portar em sociedade, se chama exatamente de : ETIQUETA.
Essas vãs elucubrações em torno de um boné lembram-me, agora, da história de um ex-seminarista que aportou, subitamente, em Matozinho. O moço boa pinta, com vestimentas graves e discurso pausado, foi imediatamente tomado como padre. De início ainda tentou desfazer o mal entendido, mas aos poucos foi gostando da idéia e aí passou a exercer plenamente as funções sacerdotais que lhe tinham confiado. Rezava missa, casava , batizava, dava extrema-unções . Era queridíssimo na comunidade e cantava, saltitava em Show-missas que cada vez mais iam fazendo inflar a platéia da pacata cidade. A novidade, no entanto, chocou as beatas mais tradicionais que começaram a torcer o nariz , o que terminou por facilitar o desvendamento da farsa.
O novo pároco, não muito versado em teologia, passou a cometer alguns deslizes que,aos olhos dos cristãos comuns, hipnotizados pela música, pareciam coisa de somenos importância; mas para as beatas mais tradicionais se tornaram peças de um quebra-cabeças que foi aos poucos se materializando. O sacerdote ,freqüentemente, misturava a "Salve-Rainha" com a "Creio em Deus Pai" . Os sermões eram bastante liberais e abordava-se de cibernética à plantação de cebola. Numa das missas, ele simplesmente se esqueceu de proceder à Elevação e fez a Comunhão dos fiéis sem ter consagrado as hóstias previamente.
As beatas também já haviam desconfiado da quantidade de vinho ingerida pelo pastor em cada missa: Bebia na Liturgia, no Ofertório, na Leitura do Evangelho, na Homilia, no Sermão, até no "Ide em Paz...". A gota d'água , no entanto, ocorreu num dia de confissão quando um sessentão da Cidade, ajoelhado aos seus pés, sussurrou um pecado cabeludo: tinha uma amante há já alguns anos. O pastor , calmamente, interrogou se a esposa legítima se encontrava na Igreja naquele momento. O senhor respondeu que sim e mostrou sua cara-metade, naquele mesmo instante, curvando-se ante o vaso de água benta. Era uma mulher enorme, dessas de se pesar em arroba, mal feita como um saco cheio de cruz e com uma cara amassada como se estivesse encostada numa vidraça. O pastor olhou espantado aquele Trivelato truncado e foi taxativo:
--- Mande sua mulher aqui agora mesmo, que a penitência eu vou passar é para ela: cinco Rosários. Você tá absolvido, rapaz!!!
Quando as beatas tomaram conhecimento do ocorrido, foram direto ao bispo. Contactada a arquidiocese, em pouco a polícia estava no encalço do pseudoprofeta que obrou o único milagre de que se tem notícia: Escapou da noite para o dia, como se tivera pacto com o demo.
Restabeleceu-se a ordem religiosa em Matozinho, mas permaneceram alguns problemas aparentemente complexos. Mães ,cujos “anjos" tinham sido batizados, in extremis, pelo sacerdote de araque , choravam agora temendo estarem seus rebentos condenados ao limbo, ad eternum. Alguns casais unidos em cerimônia presidida pelo pastor fugitivo foram chamados para se submeterem novamente ao matrimônio. Alguns noivos , no entanto, já gozando das benesses do casamento, se negaram, terminantemente, dizendo que não iriam cometer o mesmo erro duas vezes. O pior, no entanto, aconteceu com as beatas denunciantes: viviam agora amedrontadas, temendo verem seus segredos terríveis de confessionário revelados pelo ex-pároco, em represália . Desde o dia da fuga rezavam sem parar, enquanto absortas fitavam a única peça que restara de lembrança do ex-santo reverendo, na sacristia :
-- Um Boné!

J. Flávio Vieira


Do Livro : "Matozinho vai à guerra"

3 comentários:

  1. Muito bom, muito bom,
    muito bom bom bom.
    JFlávio, que humor massa!
    Abraços.

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  2. Obrigado ao Domingos por ter gostado do texto e mais por ter tido a coragem de enfrentar essse catatau de palavras.

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  3. Meu caro JFlávio,
    palavras em abundância - todas a fio e bem costuradas - para mim será sempre um contentamento. Principalmente com essa sutileza moleque e desprendida que vosmicê debulha. Seu humor é um ótimo vinho. Manda mais!
    Abraços.

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