quarta-feira, 20 de maio de 2009

Bendito maldito

O músico Jards Macalé fala sobre as parcerias, sobre sua relação com o mercado fonográfico e lembra o início de carreira, quando foi considerado um marginal da MPB

O ano era 1969; o local, Maracanãzinho, no Rio de Janeiro. Um tal de Jards Macalé sobe ao palco do IV Festival Internacional da Canção (FIC) para “defender” – como se dizia na época – sua canção Gotham City. Por uma dessas ironias da vida, a música – que tem o nome da cidade por onde perambula o cavaleiro das trevas, Batman – foi vaiada do início ao fim, e Jards saiu de lá, e entrou para a MPB, com fama de maldito, exatamente como o herói dos quadrinhos. Mas isso já faz 40 anos e, hoje, o músico, compositor, ator, autor de trilhas para o cinema e também cantor é um dos “benditos” da produção nacional. Não que ele faça questão disso. “Maldito era uma qualificação, pelo menos para mim, maravilhosa”, afirma em conversa exclusiva com a Revista E. “E, segundo aquele código [refere-se ao contexto da época da ditadura militar], qualquer pessoa que fugisse daquilo era tachado de maldito. Então temos Villa-Lobos maldito, Vinicius de Moraes maldito.” Jards Anet da Silva nasceu em 3 de março de 1943 no bairro da Tijuca, no Rio, e cresceu rodeado de música. Os batuques que ecoavam do Morro da Formiga, o Vicente Celestino que o vizinho ouvia sem parar, e os foxes, valsas e modinhas tocadas pela mãe, dona Lygia, ao piano, e pelo pai, Jards Gomes da Silva, no acordeom. O apelido que acabou virando sobrenome, Macalé, é também da infância, quando, com uns 8 anos de idade, jogava futebol na praia com os amigos, mas era tão mal jogador que a turma lhe imprimiu logo a alcunha, emprestada do pior jogador do Botafogo na época. O tempo foi passando e Jards acabou transformando as vaias do FIC, lá do começo, em combustível para conquistar espaço e prestígio no cenário musical brasileiro. Parceiro de outros artistas, como Waly Salomão, Gal Costa e Caetano Veloso, o músico, atualmente, contabiliza: “Não tenho uma carreira propriamente dita, não gosto de pensar assim. [música] É o meu ofício e o meu prazer”.
A seguir trechos:
O ComeçoNaquela época [1960 e 1970], maldito queria dizer à margem. Era isso que significava ser maldito de acordo com o código vigente daqueles anos. Nós estávamos na ditadura, num sistema fechado. E qualquer atitude, qualquer comportamento que não fosse o dito oficial era tido como “fora do sistema”. Aí vieram os adjetivos: marginal e, no caso, maldito. Mas, então, maldito era uma qualificação, pelo menos para mim, maravilhosa, porque estávamos todos malditos: eu, Baudelaire [Charles-Pierre Baudelaire, 1821-1867], Rimbaud [Jean-Nicolas Arthur Rimbaud, 1854-1891], que eram considerados malditos – poetas franceses, barra-pesada. E, segundo aquele código, qualquer pessoa que fugisse daquilo era tachado de maldito. Então temos Villa-Lobos maldito, Vinicius de Moraes maldito, não era só eu. Os mais jovens também: Luiz Melodia maldito, Tom Zé, enfim, todo aquele pessoal. Mas o tempo passou e as coisas mudaram, e atualmente as novas gerações não têm informação para saber o que era aquilo, o que é maldito. Se você for olhar no dicionário, a palavra “maldito” tem uma definição barra-pesada. Mas hoje as pessoas não têm referências para saber o que era o maldito daquela época. Eu acho que, afinal de contas, nós todos fomos amaldiçoados, o Brasil era maldito, um país marginalizado política e economicamente no contexto mundial. Mas, de qualquer forma, não faz sentido hoje chamar um artista de ?maldito porque as pessoas não têm referência para isso. Primeiro que eu nem gosto desse negócio de artista.Ou você é criador, no sentido de produzir obras artísticas, ou então você é aquela figura ligada a essa bobagem de celebridade, de ser famoso, algo que está diretamente ligado a dinheiro. E artista não tem nada a ver com isso. Sua fotografia nos jornais não te dá status de artista. Além do mais, isso prejudica o criador porque as pessoas misturam alhos com bugalhos.

Vapor Barato, um “Pobre Hino Hippie”

Todos nós tínhamos cabelos grandes, barbas grandes, e o Waly Salomão [poeta e parceiro de Jards, entre outras canções, em Vapor Barato] estava em São Paulo e foi preso com um cigarro de maconha. A polícia passou e levou. Ele foi preso, foi para o Carandiru. Lá eles torturaram Waly, pau-de-arara etc., humilhação e aquela coisa toda. Quando ele finalmente foi solto – nós procuramos várias pessoas para nos ajudar a libertá-lo –, entre outros poemas, ele escreveu a letra de Vapor Barato, que diz: “Ah, eu estou tão cansado/Mas não pra dizer/Que eu não acredito mais em você” etc. Era uma letra de abandono. Num certo sentido, ele dizia que ia embora daqui, ia tomar “aquele velho navio”. E a expressão “vapor barato” também tem vários sentidos. O vapor era o do navio, mas também era como se chamasse o cara que vendia drogas. E o barato era o que não valia muito, mas era também o “barato” que a droga dava, o efeito da maconha. E estávamos todos pobres, sem trabalho. E eu estava à margem do processo também. Tínhamos dificuldade de colocar nossa produção dentro do chamado mercado. Enfim, era esse o contexto de Vapor Barato. Agora é engraçado porque, mesmo na época, a música foi um sucesso, quando a Gal Costa a cantou no seu show Fatal, em 1969/1970 [o disco com o registro do show, Fa-Tal - Gal A Todo Vapor, foi lançado em 1971], Vapor Barato virou um hino. O próprio Waly dizia que era um “pobre hino hippie”. Enfim, ela fez um grande sucesso para a época. E fiquei ainda mais surpreso quando ela retornou na trilha do filme Terra Estrangeira [de 1996, com direção de Walter Salles e Daniela Thomas], e depois ela ainda é gravada pelo grupo O Rappa [em 2001], e foi quando, pela terceira vez, ela volta a ser um sucesso. Mas é interessante notar que, na verdade, trata-se de uma música datada, ela falava de uma situação dos anos de 1970, mas mesmo assim ela vem e faz sucesso fora dessa história toda.

Waly Salomão, Grande ParceiroWaly era muito exuberante na coisa dele, no comportamento, na poesia. Era ultracriativo, sempre com uma vitalidade muito grande. E eu sou mais quieto, sou tímido. Mas, quando nos juntávamos para fazer a coisa, tinha um fluxo criativo muito grande. E a coisa seguia para o que o Waly chamava de “morbeza romântica” [neologismo de Waly, seria a soma das palavras morbidez e beleza]. Eu não diria que era uma melancolia exatamente, aquilo era proposital, aquele era o projeto. E naquele momento, se existia algo de melancólico, ele fazia parte do que estávamos passando.
Sozinho ou Bem AcompanhadoO músico puro geralmente é um artista individual, quem produz música sem letra – a não ser que ele também escreva. Mas desde os primórdios da música brasileira, e também mundial, existe a parceria. É uma cumplicidade. É bom criar tanto sozinho quanto em parceria, os dois são bons. Não tenho preferência. Quando estou sozinho posso fazer música, criar meus temas musicais, e se tenho um parceiro acontece uma junção. Agora, claro, o trabalho muda, porque é outra relação. Enfim, estar sozinho é bom, estar com o outro também é bom, só que de uma forma diferente.
“Eu Nunca Parei”De fato, já fiquei, longos períodos sem gravar. E as pessoas sempre me perguntam por quê. Costumo responder que, em primeiro lugar, é porque não tenho uma carreira propriamente dita, não gosto de pensar assim. [música] É o meu ofício e o meu prazer. E esses períodos longos são porque não sou o cara que persegue o mercado ou que está nele, não quero estar na moda nem nada disso. Construo a minha linguagem, e a minha linguagem pessoal é a música. Isso é algo que não tem uma continuidade do tipo “agora vou fazer assim, agora vou fazer de outro jeito”. E também pelo seguinte: desafiei muito essa coisa de mercado, gravadora, direitos autorais. O meu próprio comportamento dentro dessa história não é uma coisa que o esquema que chamam de mercado exerce, ele não funciona do jeito que eu crio. Essa coisa de gravar um disco por ano, ou dois, sei lá, enfim, não tenho esse negócio. Desde 1998 [ano em que Jards lançou seu primeiro CD em 11 anos], fiz vários discos até agora. E posso fazer três em um ano, quatro ou cinco, ou posso não fazer nenhum também. Nunca parei de fazer música. Foi como eu disse: a música é o meu ofício.

Obs.: ENTREVISTA PUBLICADA PELA REVISTA E (SESC SÃO PAULO - janeiro/2009).

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