Caetano Veloso em Juazeiro do Norte
A sagração da iconoclastia
O dia 30 de maio de 2009 entrou carnavalescamente pela porta dos fundos da história cultural da tribo Cariri. Uma das cenas mais grotescas já encenadas no teatro rabelístico caririense anunciou a premência do burlesco: quando Caetano Veloso entrou no Palco da Aplausos, encontrou uma platéia com mil e uma cadeiras de plásticos na cabeça. Estava fundada, pois, naquela noite sem devolução, a versão da inversão.
Além da alegórica transferência localizada da bunda e do assento, Caetano Veloso inverteu muito mais, colocou no lugar da província o universal; a arte no lugar da desarticulação; no lugar da idolatria a iconoclastia; o ontológico no lugar da antologia; no lugar do envolvido ele colocou o evoluído, que trouxe consigo o futuro para uma imensa parte daquela gente presa ao passado mumificado. Assim a chuva demonizada em forma líquida, indesejada pelas pranchinhas e pelo brilho fácil das jóias folheadas, veio em forma de uma inesperada inundação estética civilizatória, provinda de uma banda pós-moderna e de um artista atemporal.
Quem foi para o show esperando encontrar um Caetano milagreiro, capaz de reacomodar o que já estava acomodado nos recônditos miseráveis dos barzinhos de ponta de rua, encontrou um Veloso exorcista, capaz de reduzir a migalhas os seus demônios cultivados e os demônios incultos, possuidores de boa parte da platéia, que confundiu espetáculo musical com evento social e ingresso com convite para a proclamação da inutilidade da primavera no baile do Lions Club, só faltaram as doações generosas de alimentos não perecíveis para as vítimas – coitadas - das cheias, elas mesmas.
Caetano Veloso estava e sempre esteve íntegro artisticamente. Com um repertório impecável para quem o concebe livre para criar e um repertório imperdoável para quem o conserva cativo para lembrar, Caetano cantou, dançou e profanou a sagração dos medíocres. A maioria das músicas do repertório do show está no disco novo “Zii e Zie”. A parte menor das músicas do repertório, e nem por isso minúscula, faz parte do período do exílio do compositor e de outras fases de sua carreira extensa e internacional, com mais de quarenta discos de inéditas lançados no mercado interno e externo.
Mais pitoresco do que os guarda-chuvas na platéia, que lembraram as arquibancadas do Romeirão em dia de Icasa e Guarani, foram as reações dos “emergentes”, imbecilizados pela falta de civilidade e enfeitados pelo excesso de penduricalhos inócuos, ao vaiarem e apuparem Caetano Veloso com expressões como bicha e outras idiotices, a cada música nova apresentada. Enquanto isso, do outro lado, no avesso desse universo de baixarias, outra parte do público se deliciava com aquela chuva fina, sutil e translúcida de talento, competência, profissionalismo, estética contemporânea e arte, que Caetano Veloso e a Banda Cê, fizeram cair sobre a Aplausos, para lavar de uma vez por todas o lixo cultural que ainda teimava em ecoar entre aquelas paredes.
Mas essa postura com requinte de camelódromo e de cobrador de van, apresentada por uma boa parte da platéia de grife, é mais do que compreensível e lamentável, pois quem tem sido educado intensamente pela filosofia de cabaré e álcool dos Aviões do Forró, Solteirões do Forró e outras macacadas do forró, não poderia jamais reagir positivamente à poesia de vanguarda de Caetano Veloso, principalmente em uma roupagem tão refinada e alternativa proporcionada pelo trio Pedro Sá, Marcelo Callado e Ricardo Dias Gomes, respectivamente, guitarra e baixo, bateria, piano e baixo. Seria tão impossível quanto esperar de um vendedor de discos piratas da São Pedro uma conceituação sobre o dodecafonismo de Schoemberg. Não é à toa que ele foi vaiado em Fortaleza também, pois filha de peixe piranha é.
Caetano Veloso se renova a cada ano e se distancia a cada ano do grosso de sua antiga platéia dos anos 60, 70 e início dos 80. A maioria nunca ouviu falar em Artic Monkeys, Pixies, Sofa Surfers ou Cidadão Instigado. Bem antes do disco Cê, de 2006, que Pedro Sá é o escudeiro de Caetano Veloso. Com ele veio a pegada mais roqueira, mais dissonante, mais distorcida e mais experimental. Mas experimentalismo não é novidade para quem protagonizou o Tropicalismo e lançou discos como Araçá Azul e Jóia. Dessa vez, em lugar do concretismo na poesia e da estética hippie na música, está o existencialismo político e o minimalismo dissonante, que Pedro Sá trouxe como herança da banda carioca “As Mulheres que só dizem sim”.
Ver e ouvir Caetano Veloso em plena criatividade foi ter certeza que ele é, sem dúvidas, um dos mais importantes artistas brasileiros de todos os tempos, não só pelo serviço prestado, mas também pela continuidade de um caminho completamente alheio ao óbvio e ao pastiche. O que se viu no palco da Aplausos foi um artista vivo, atuante, diametralmente oposto ao conformismo, livre do exibicionismo, do virtuosismo e do formato comercial. A partir da perspectiva imobilizada dos museus e afins, bem como do asseio anômalo dos entrepostos de verduras e contrabandos do Paraguai, nada mais natural do que boa parte da platéia não ter entendido nada, inclusive a dedicatória de duas músicas em memória de Augusto Boal.
A sagração da iconoclastia
O dia 30 de maio de 2009 entrou carnavalescamente pela porta dos fundos da história cultural da tribo Cariri. Uma das cenas mais grotescas já encenadas no teatro rabelístico caririense anunciou a premência do burlesco: quando Caetano Veloso entrou no Palco da Aplausos, encontrou uma platéia com mil e uma cadeiras de plásticos na cabeça. Estava fundada, pois, naquela noite sem devolução, a versão da inversão.
Além da alegórica transferência localizada da bunda e do assento, Caetano Veloso inverteu muito mais, colocou no lugar da província o universal; a arte no lugar da desarticulação; no lugar da idolatria a iconoclastia; o ontológico no lugar da antologia; no lugar do envolvido ele colocou o evoluído, que trouxe consigo o futuro para uma imensa parte daquela gente presa ao passado mumificado. Assim a chuva demonizada em forma líquida, indesejada pelas pranchinhas e pelo brilho fácil das jóias folheadas, veio em forma de uma inesperada inundação estética civilizatória, provinda de uma banda pós-moderna e de um artista atemporal.
Quem foi para o show esperando encontrar um Caetano milagreiro, capaz de reacomodar o que já estava acomodado nos recônditos miseráveis dos barzinhos de ponta de rua, encontrou um Veloso exorcista, capaz de reduzir a migalhas os seus demônios cultivados e os demônios incultos, possuidores de boa parte da platéia, que confundiu espetáculo musical com evento social e ingresso com convite para a proclamação da inutilidade da primavera no baile do Lions Club, só faltaram as doações generosas de alimentos não perecíveis para as vítimas – coitadas - das cheias, elas mesmas.
Caetano Veloso estava e sempre esteve íntegro artisticamente. Com um repertório impecável para quem o concebe livre para criar e um repertório imperdoável para quem o conserva cativo para lembrar, Caetano cantou, dançou e profanou a sagração dos medíocres. A maioria das músicas do repertório do show está no disco novo “Zii e Zie”. A parte menor das músicas do repertório, e nem por isso minúscula, faz parte do período do exílio do compositor e de outras fases de sua carreira extensa e internacional, com mais de quarenta discos de inéditas lançados no mercado interno e externo.
Mais pitoresco do que os guarda-chuvas na platéia, que lembraram as arquibancadas do Romeirão em dia de Icasa e Guarani, foram as reações dos “emergentes”, imbecilizados pela falta de civilidade e enfeitados pelo excesso de penduricalhos inócuos, ao vaiarem e apuparem Caetano Veloso com expressões como bicha e outras idiotices, a cada música nova apresentada. Enquanto isso, do outro lado, no avesso desse universo de baixarias, outra parte do público se deliciava com aquela chuva fina, sutil e translúcida de talento, competência, profissionalismo, estética contemporânea e arte, que Caetano Veloso e a Banda Cê, fizeram cair sobre a Aplausos, para lavar de uma vez por todas o lixo cultural que ainda teimava em ecoar entre aquelas paredes.
Mas essa postura com requinte de camelódromo e de cobrador de van, apresentada por uma boa parte da platéia de grife, é mais do que compreensível e lamentável, pois quem tem sido educado intensamente pela filosofia de cabaré e álcool dos Aviões do Forró, Solteirões do Forró e outras macacadas do forró, não poderia jamais reagir positivamente à poesia de vanguarda de Caetano Veloso, principalmente em uma roupagem tão refinada e alternativa proporcionada pelo trio Pedro Sá, Marcelo Callado e Ricardo Dias Gomes, respectivamente, guitarra e baixo, bateria, piano e baixo. Seria tão impossível quanto esperar de um vendedor de discos piratas da São Pedro uma conceituação sobre o dodecafonismo de Schoemberg. Não é à toa que ele foi vaiado em Fortaleza também, pois filha de peixe piranha é.
Caetano Veloso se renova a cada ano e se distancia a cada ano do grosso de sua antiga platéia dos anos 60, 70 e início dos 80. A maioria nunca ouviu falar em Artic Monkeys, Pixies, Sofa Surfers ou Cidadão Instigado. Bem antes do disco Cê, de 2006, que Pedro Sá é o escudeiro de Caetano Veloso. Com ele veio a pegada mais roqueira, mais dissonante, mais distorcida e mais experimental. Mas experimentalismo não é novidade para quem protagonizou o Tropicalismo e lançou discos como Araçá Azul e Jóia. Dessa vez, em lugar do concretismo na poesia e da estética hippie na música, está o existencialismo político e o minimalismo dissonante, que Pedro Sá trouxe como herança da banda carioca “As Mulheres que só dizem sim”.
Ver e ouvir Caetano Veloso em plena criatividade foi ter certeza que ele é, sem dúvidas, um dos mais importantes artistas brasileiros de todos os tempos, não só pelo serviço prestado, mas também pela continuidade de um caminho completamente alheio ao óbvio e ao pastiche. O que se viu no palco da Aplausos foi um artista vivo, atuante, diametralmente oposto ao conformismo, livre do exibicionismo, do virtuosismo e do formato comercial. A partir da perspectiva imobilizada dos museus e afins, bem como do asseio anômalo dos entrepostos de verduras e contrabandos do Paraguai, nada mais natural do que boa parte da platéia não ter entendido nada, inclusive a dedicatória de duas músicas em memória de Augusto Boal.
Todo artista tem
ResponderExcluirO público que merece
E vice-versa
Marcos, você é um excelente crítico da arte musical, umas colocações espetaculares!
ResponderExcluir"...que confundiu espetáculo musical com evento social"... "postura...de camelódromo...da platéia de griffe...educada pela filosofia de cabaré e álcool...das macacadas do forró".
Cara, meus PARABÉNS!
O que está em questão nisso tudo, é o marasmo provinciano que o Crato sempre cultuou, cultua e cultuará. Não me estranha as vais relatadas no texto,o Crato sempre confundiu show com festa, o que a massa quer é apenas se chapar ao som rasteiro do momento. Veja o que acontece na exporcaria: show de Hermeto...Ednardo, duas mil, cinco mil pessoas, show de aviões, calcinha, trinta mil, quarenta mil...é isso. Fazer o quê. "quem como prego sabe o cu que tem", Titãs.
ResponderExcluirNão Calazans!
ResponderExcluiresse showzinho não aconteceu no Crato. Foi no Juá...
Quando eu era um rapaz, costumava ouvir que Caetano estava acima da crítica. Parece que alguns críticos acreditam nisso. Mas algo que me chamou a atenção --isso já depois dos quarenta-- foi alguém dizer que Caetano e o Tropicalismo são a "consagração do inevitável".
ResponderExcluirDe que lado está a razão?
E graças a Deus...
ResponderExcluirCaetano já podia ter se aposentado, assim como Michael Felps o fez. Seria mais decente...
ResponderExcluirPerdão. Quem se aposentou, e por sinal precocemente, foi o nadador australiano Ian Thorp. Michael Phelps, assim com Caetano, está na ativa. Inclusive, foi recentemente suspenso porque foi flagrado dando "uns tapinhas" numa festa.
ResponderExcluirTem gente que gosta, outros não. Gosto é gosto. O que eu acho estranho mesmo é o cara ir a um show de quem não gosta. E pagar para isso. E depois vaiar.
ResponderExcluirPagou para vaiar?
Prefiro vaiar de graça como na vez que o Lúcio Alcântara chegou em Missão Velha com o Lula, ainda em 2006, para o começo das obras da Transnordestina e levou a maior vaia que eu já presenciei. Foi de graça.
Talvez alguns que foram se acharam no direito de vaiar porque pagaram e o cara não tocou as músicas "conhecidas", aí não gostaram disso. Mas se fosse por causa disso, era só esperar o rapaz ir no Faustão, que lá só toca música "conhecida"...
No juá ou no Crato ou em Barbalha não importa, foi no cariri. O que valeu foi a sacação do LUB LUB, estando antenado com as novidades, com as texturas, e até com a insiguinificância da vai paga.
ResponderExcluirCerto está o Darlan, pra que pagar para vaiar? é coisa de "tabacudo" como diz aqui em Recife. Tem tanta insignificância(2) pra vaiar, como para aplaudir. Eu hem!!!
Tchubas.
E a vaia que o "cara" levou em pleno Maraca, na abertura do Pan? Essa sim foi a maior vaia já ouvida. Mas, sobre vaia, a mais interessante e original deu-se na Praça do Ferreira, em Fortaleza, em meados do anos de 1940, quando uma multidão vaiou o sol na quarta-feira de cinzas. Passou o carnaval chovendo e nublado.
ResponderExcluir"mas eu tambem sei ser careta de perto ninquem é normal"lubi lubi destronou a lògica e coroou o inatingível.viva a música pra bula a brasileira.
ResponderExcluir"mas eu tambem sei ser careta de perto ninquem é normal"lubi lubi destronou a lògica e coroou o inatingível.viva a música pra bula a brasileira.
ResponderExcluirsabido é calvin klein "falem mau, mais de mim"
ResponderExcluirValeu galera,
ResponderExcluirfico muito agradecido pelas postagens.
Um abraço geral na geléia.
Diga aí poeta,
ResponderExcluirtenho o maior respeito pela sua opinião, grande Rafa, mas não posso concordar em dois pontos, nem que Caetano tenha que se aposentar e nem que esse tenha sido o caso do público merecido.
Caetano Veloso é, no mínimo, histórico.
O que se viu na Aplausos foi o reinado do cafuçu de grife. Seria muita pretensão esperar que um artista desse porte se dobre a um esquematismo de repertório, a não ser que ele queira, como acontece com muitos.
Obrigado Marta,
ResponderExcluirseu comentário aumenta ainda mais a responsabilidade da escrita.
abraços
Calazans, esse provincianismo é uma praga do caralho, num desinfeta nem a pau.
ResponderExcluirPense na cena, cara, a socialite emergente, "toda de cu lavado", com as cadeiras de plástico na cabeça, eu digo milhares delas de pernas pro ar, cara foi esquisito demais. Ele cantou a primeira música se abrindo o tempo todo.
valeu brother
Chagas, meu caro,
ResponderExcluirnão acredito que ninguém esteja acima da crítica e muito menos que o tropicalismo tenha sido isso tudo, mas o fato é que ele tem muito mais história e respaldo do que uma penca de artista barato que existe por aí.
Eu não gosto de tudo o que ele fez, e mesmo que eu não tivesse gostado do show eeu teria a cara de pau de chamar ele de bicha, baiotola, franga, etc., só pelo fato d'eu estar pagando. Isso é provincianismo puro.
Darlan,
ResponderExcluirconcordo com você demais. Mai esquisito do que ir para um show vaiar, é pagar pra vaiar, aí tem que ser cafuçu doutorado.
Prezado Marcos,
ResponderExcluirAcho que sua crítica, caso raro, foi melhor que o objeto. Também, não posso afirmar peremptoriamente isso, pois não fui ao show e jamais iria. Mas reconheço a importância de Caetano para a MPB. Respeito sua inquietude e o fato dele sempre se renovar. Gostei de algumas coisas deste último disco, mas muito mais pelo o que rapaziada que o acompanha faz. O que atrapalha Caetano, pelo menos no que toca a minha idiossincracia, é essa vontade imorredoura de polemizar. Paulo Francis, outro polêmico genial, comprou uma briga com Caetano e deu a palavra final, quando o baiano elogiu a axé music como sendo a última novidade cultural do planeta. Paulo Francis disse: a Bahia não pode exportar cultura pelo semples fato de não tê-la. Gostei. É a farsa contra a farsa.
Caro Marcos,
ResponderExcluirhá certos assuntos em que a achologia cabe direitinho. Esse do Caetano é um. Logo, eu acho que existe um exagero em relação a Caetano. Fica sempre a impressão de ser Caetano uma figura dominante na música brasileira, uma espécie de deus, de centro em que os demais não passam de elementos periféricos.
Agora, dizer que Caetano, enquanto compositor e intérprete, não tem valor seria uma injustiça. Mas não
podemos cair nesse truque de marketeria que faz da pessoa algo maior do que a obra. Parece que Caetano soube aproveitar bem esses truques. Basta lembrar sua imagem cheia de ambivalências que pode, por exemplo, resultar em coisas como a atitude intolerante da platéia "provinciana". A orientação sexual dele é o
que menos importa. Mas não teria ele mesmo alimentado essa dúvida apenas para criar uma marca?
Marcas, meu caro Marcos, como o nome diz, marcam. Gillette virou sinônimo de lâmina de barbear.
Enfim, tirando o marketing, sobra um compositor talentoso. Só isso. O resto é mera perfumaria. Lembremos que é preciso ir "devagar com o andor".