Jesualdo entrou no escritório com aquele ímpeto de furacão Katrina. Esperara por mais de uma hora
na sala de espera do advogado, ansioso, aguardando a saída de um senhor
careca que cuidava de uma das coisas mais enroladas desse mundo
: Inventário de gente rica. Ficou ali,
tentando ler revistas antigas, sem se concentrar nas notícias, como se
estivesse sentado em folha de cansanção.
Os minutos se arrastavam tartarugadamente. Quando a atendente, por fim ,
liberou sua entrada, foi como se lhe tivessem arrombado as tariscas de uma gaiola. O causídico ali estava à sua frente,
calmo, impassível, sem maiores motivos para desespero, afinal casos eram apenas
casos e se sucediam monotonamente, todo santo dia, diante do seu bureau. Não contendo
a ansiedade represada por muitos minutos na saleta de espera, Jesualdo disparou
:
---
Doutor, quero entrar com um processo de
danos morais!
Afeito
ao desespero comum de seus clientes, Dr. Cacionildo aprendera que se fazia
mister atendê-los como se estivesse degustando um prato de papa quente: era
preciso começar pelas beiradas até chegar ao fundo do pirex. Com olho clínico percebera alguns hematomas,
em fase de regressão no rosto do cliente. Levantou-se, pois, da cadeira e cumprimentou-o
formalmente. Quis saber-lhe do nome . Pediu para ficar tranqüilo que aquela era sua
especialidade. Inquiriu-o se estava tudo bem com ele e com a família, falou
sobre a estiagem no Nordeste que estava uma verdadeira calamidade, dissertou
brevemente sobre as dificuldades que vinha passando com as criações na sua
fazenda e interessou-se saber se ele também era pecuarista e como estava se
virando para alimentar o bando. Quebrado o gelo, no tangenciamento do problema central,
Cacionildo , finalmente meteu a colher no fundo do prato:
---
Pois, não, seu Jesualdo ! Em que posso
servi-lo ? Quem feriu de morte
seus princípios morais, homem de Deus ?
Jesualdo,
já abancado devidamente num cadeirão em frente ao bureau do adovogado, um pouco
mais restabelecido, foi direto aos finalmentes:
---
Quero entrar com um processo contra a Coca-cola, por danos incalculáveis à
minha moralidade e , inclusive, à minha integridade física.
O
doutor, mesmo sem ciência do objeto causador do dano e suas possibilidades
jurídicas, viu-se diante de sentimentos díspares. De um lado a alegria de poder
estar processando uma grande empresa, multinacional, de patrimônio incalculável
e, pois, com amplas condições de pagar gordas indenizações. Do outro a
percepção de que traria , na defesa, grandes escritórios nacionais, com pesada
influência política e econômica nas decisões do judiciário, máxime em
instâncias superiores. Pediu, então, a Cacionildo que detalhasse, data
vênia, toda a questão com fins de se ter
um melhor diagnóstico e prognóstico da
causa a ser encetada. Pela história comprida e cheia de reentrâncias que
Jesualdo começou a narrar, o advogado rápido percebeu que seria muito mais
enrolada a consulta que a do careca do inventário.
Jesualdo
informou que estava casado há mais de vinte anos não com uma mulher mas com uma mistura de
jararaca com lacraia. Ele sempre fora um ferrolho, mais por temor e menos por
virtude. Há uns dois anos, sabe-se lá como, começara um rolo com uma colega de trabalho. Coisa
debaixo de sete chaves, mais escondida do que
quenga de cardeal. Sabia do
perigo que corria, mas o temor estranhamente lhe instigava de forma quase que
suicida. Gabriella , a namorada, não era
uma beleza clássica. Divorciada, era fraca de feição, mas tinha lindos e
acolhedores air-bags e, da cintura para baixo, tanajurava-se maliciosamente. O
romance, discreto, ia de vento em popa, até que
a CNN da vizinhança desconfiou e terminou divulgando-o em várias edições especiais. Quando a manchete
bateu nas orelhas afiadas da esposa, esta não perdeu tempo recolhendo provas.
Quebrou o pau no pobre do Jesualdo, fez o maior escândalo e o expulsou de casa.
Ele , ao menos, teve a felicidade de sair levando a mala, ao invés de ir dentro
dela, como vem acontecendo mais modernamente.
Os meses se passaram e a raiva não aplacava. Jesualdo começou um
discreto cerca-lourenço, ajudado por amigos e familiares, mas a esposa não
queria nem ouvir falar no seu nome. Dera entrada oficial no pedido de divórcio.
O tempo, no entanto, o solucionador mor
dos problemas da humanidade, começou a surtir efeito e a dismilinguir o ódio
incontido da esposa, até porque havia opiniões fidedignas ( embora não
confiáveis de todo) de que Gabriella já navegava em outras naus. Conversa vai,
conversa vem, finalmente, após mais de um ano ,Jesualdo conseguiu marcar um
jantar com a esposa onde pretendia conversar amenidades, encetar uma nova
aproximação, fugir do passado como o cão da bíblia e, quem sabe, na melhor das
hipóteses , terminarem num motelzinho, reacendendo o fogo antigo arrefecido
pelas curvas tanajúricas gabrielianas. Segundo Jesualdo, tudo corria conforme
planejado. Escolheu um restaurante caro, uma mesa reservada, à luz de velas , uma música de fundo
adocicada, dessas contraindicadas a diabéticos. Entabulou assuntos amenos,
pediram um prato de frutos do mar, um vinho branco de boa safra. Tudo corria
bem, as mãos tinham se tocado algumas vezes e Jesualdo disse que tinha dado uma
certa “formigagem” nos dois. Mas aí veio a tragédia! Num instante, estabeleceu-se, novamente, uma praça de
guerra. Esporros da esposa, garrafada de vinho na testa de Jesualdo, fuga ,
intriga redobrada, audiência de divórcio novamente desencadeada. E tudo por
culpa da Coca-Cola !
---
Da Coca-Cola ? Mas como, seu Jesualdo?
Onde ela entra na história ? Não entendo ! --- Saltou de lá o advogado.
---
Da Coca-Cola sim, doutor ! Quando chegou o prato principal , a Lagosta ao
Thermidor, minha mulher resolveu pedir uma Coca-Cola !
---
Sim, Jesualdo, mas qual o problema ?
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Ora Dr. Cacionildo, a Coca me lascou! Agora ela não tá com essa mania besta de
botar os nomes das pessoas na latinha? Pois adivinhe o que estava escrito na
coca que minha mulher pediu ? “Quanto
mais GABI , Melhor !” Fudeu ! Quero indenização !
J. Flávio Vieira
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