quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Não sei se vocês tomaram conhecimento dessa breve, mas contundente polêmica: os organizadores do sorteio da copa teriam desconvidado a atriz Camila Pitanga por ser negra e convidado em seu lugar a apresentadora Fernanda Lima. Isso gerou uma série de protestos o que levou a uma colunista a entrevistar a apresentadora. Que se diga de passagem é uma profissional e aceitou o convite nesse ambiente que é de concorrência. a Fernanda, na entrevista, argumentou em defesa dela de um modo meio maroto e aí que li esta postagem que considero uma das mais claras sobre o assunto do racismo neste limiar entre a sua prática, a liberdade de escolha dos produtores e o profissionalismo. Não costumo postar textos de outros mais esse vale a pena. 

Sobre impostos, racismo e um conselho de minha avó (comentário à entrevista de Fernanda Lima)
Publicado em 29/11/2013 em seu blog Recordar, Repetir e Elaborar
Como a essa altura todo mundo já sabe, a FIFA escolheu a apresentadora branca Fernanda Lima para ser mestre de cerimônias de um evento, no lugar da atriz negra Camila Pitanga. Essa escolha, que gerou acusações de racismo à entidade, foi tema de uma entrevista dada por Fernanda hoje.

Nela, a apresentadora disse não ter nada a ver com isso e procurou distanciar-se da polêmica sobre racismo dizendo coisas como “só porque eu sou branquinha?” e “pago meus impostos”.
Esta não é uma discussão sobre impostos nem muito menos sobre a situação fiscal de Fernanda Lima: é uma discussão sobre racismo. Mas, já que ela tocou no assunto “impostos”, eu gostaria de fazer um breve desvio de rota antes de passar ao que realmente interessa.
Não sei como é em outros países, mas para mim está claro que nós brasileiros temos muito o que aprender sobre impostos, o que eles representam e significam. Em primeiro lugar, precisamos aprender que “pagar impostos” não equivale a rezar um Pai Nosso e duas Ave Marias: não isenta de todo pecado e não livra de todo mal. Para a obtenção de benefícios espirituais, existe o pagamento do dízimo. Imposto é outra coisa.
Precisamos aprender também que pagar impostos não faz de ninguém uma pessoa moralmente imaculada. Pagar impostos é uma obrigação da vida em sociedade. Não é algo para se ter orgulho. Ao pagar seus impostos, você simplesmente não está cometendo o crime de sonegação fiscal – assim como, ao não matar ninguém, você apenas não está cometendo o crime de homicídio. Ninguém sai por aí batendo no peito e dizendo “nunca matei ninguém, hein!”, como se isso merecesse algum parabéns. Em compensação, estufamos o peito para dizer “pago meus impostos”, como se a não-sonegação de impostos fosse indicativa de força de caráter ou de uma alma superior.
Por fim, precisamos aprender que “pago meus impostos” não é argumento para nada. Vale lembrar que Descartes não disse “pago meus impostos, logo existo” nem Hamlet afirmou que “pagar ou não impostos, eis a questão”.  Podemos estabelecer como regra o seguinte: o pagamento ou não-pagamento de impostos não se coloca como argumento em discussões nas quais nosso contador não está interessado. O pagamento de impostos, afinal, é não apenas uma obrigação como também um fato banal e corriqueiro da vida, assim como lavar a louça e escovar os dentes. Usar o argumento “pago meus impostos” em uma discussão sobre racismo faz tanto sentido quanto usar o argumento “escovo os dentes todo dia” em uma discussão sobre políticas de redistribuição de renda.
E, já que não faz nenhum sentido mesmo, vamos logo ao que interessa. Minha avó costuma me dar um conselho-conceito dentro do qual se encaixam inúmeras coisas: “Filhinha, faz tudo direitinho!” Sempre gostei desse conselho justamente pela generalidade da fórmula: as coisas a serem feitas direitinho eram todas aquelas que meu superego assim determinasse.
(Por exemplo, é preciso pagar os impostos direitinho.)
Eu costumava pensar que fazer tudo direitinho seria suficiente – fazer as coisas direitinho era o que a vida exigia de mim. Fazendo tudo direitinho, pensava eu, tudo ficaria bem.
Depois da leitura de certo livro, porém, passei a questionar o conselho de minha avó. Em É Isto Um Homem?, Primo Levi conta como sobreviveu à sua estadia em um campo de concentração na Alemanha nazista. Comecei a ler o livro imaginando que os momentos mais aterrorizantes seriam as descrições de execuções em câmaras de gás. Mas, como costuma acontecer em toda experiência de leitura digna desse nome, minha expectativa foi subvertida: o que mais me impressionou não foram os momentos em que pessoas eram mandadas explicitamente, diretamente para a morte, por assim dizer.
O que mais me chocou foi a descrição das pessoas que morriam no campo por doença e/ou exaustão, após quatro ou cinco meses de trabalho forçado – sem que fosse necessário enviá-las para o gás. Para morrer no campo, você não precisava ter feito nada de errado: pelo contrário, bastava fazer tudo direitinho.  

Se você fizesse tudo direitinho, isto é, se seguisse estritamente as regras impostas pelos alemães – comendo exatamente a ração de comida que lhe era destinada (em vez de roubar algum alimento a mais) e trabalhando com afinco todos os dias (em vez de enganar seu superior e se poupar) – você morreria em poucos meses. Os alemães criaram aquelas regras justamente para que seu correto cumprimento levasse à morte. Assim, bastava que os prisioneiros fizessem tudo direitinho – coisa que a imensa maioria fazia – para que morressem dentro de pouco tempo. Sobreviveram apenas aqueles que conseguiram, em alguma medida, burlar o sistema
Calma, pessoal: eu não vou dizer que o mundo é governado por uma conspiração de nazistas malvados e que vamos todos morrer em cinco meses se continuarmos pagando impostos e escovando os dentes. O que eu vou dizer é coisa muito pior – coisa que eu gostaria que pessoas brancas como eu se dispusessem a ouvir e pensar a respeito.
Ao fazer tudo direitinho, sem mover um dedo para infligir qualquer mal a quem quer que seja, nós brancos somos beneficiários silenciosos de um sistema opressor que nos precede e, apesar de que não o queiramos, nos define. Quando eu era criança, trabalhava em minha casa uma empregada doméstica negra que tinha uma filha mais ou menos da minha idade.
Eu nunca fiz nada de mau para a filha da minha empregada. Assim como Fernanda Lima (e digo isso sem nenhuma ironia), eu sou uma fofa. Nem o rabo do gato eu puxava.
Só que a filha da empregada doméstica, negra e pobre, estudando numa escola de má qualidade e tendo que trabalhar também como empregada doméstica a partir dos 16 anos para complementar a renda da família, teve uma péssima formação escolar. Enquanto isso, eu, a filha da professora de francês, branca e de classe média, estudando numa escola pra lá de razoável e trabalhando a partir dos 15 anos como professora de inglês apenas para ter uma experiência bacana e ganhar um dinheirinho só meu, tive uma formação escolar bastante boa.
Acho que ninguém estranhará se eu disser que a filha negra da empregada doméstica foi uma concorrente a menos para a filha branca da professora de francês no vestibular da USP. Em termos bem concretos, a negritude e a pobreza dela e de tantas outras meninas e meninos me beneficiaram enormemente – e isso apesar de eu nunca ter feito nenhuma maldade para nenhum deles.
Eu sempre fiz tudo direitinho, afinal.
O problema é que “fazer tudo direitinho”, no nosso mundo, é exatamente o que o mundo exige para o mundo permanecer exatamente do jeito que está. Se continuarmos fazendo tudo direitinho, escovando os dentes, pagando impostos, aceitando convites da FIFA e passando no vestibular, passaremos os próximos duzentos anos sem que as futuras Camilas Pitangas sejam alçadas ao posto de estrelas internacionais – e, o que é muito mais grave, sem que as futuras filhas de empregadas domésticas consigam estudar em boas universidades
Claro que Fernanda Lima recebeu o convite da FIFA em função de seu próprio trabalho, esforço e mérito. Ninguém lhe está negando essa conquista. Da mesma forma, eu também passei no vestibular por trabalho, esforço e mérito meu. O que não dá para desconsiderar sem uma boa dose de hipocrisia é o seguinte: Nesse processo de sermos eleitas pela FIFA e pela FUVEST, tanto ela como eu recebemos uma bela ajudinha.
Essa bela ajudinha nos foi dada pelo racismo estrutural da sociedade brasileira, que eliminou centenas e milhares de possíveis concorrentes nossas sem que precisássemos, nem Fernanda nem eu, movermos uma palha para isso. É um sistema perfeito: a gente apresenta o evento da FIFA, estuda na USP e ainda paga de boazinha (afinal – repito – nunca fizemos mal a ninguém!).
Ao dizer que paga impostos, Fernanda Lima tentou se esquivar do assunto racismo. Não posso dizer que não a entendo. Quando o assunto é racismo, nós brancos geralmente preferimos falar sobre impostos, sobre pobreza, sobre o julgamento do mensalão e sobre a morte da bezerra – tudo para não tocar no assunto tão incômodo com o qual morremos de medo de lidar. (Aliás, eu fiz exatamente isso, exatamente neste texto.)
Sem nunca tê-lo ouvido antes, Fernanda Lima mostrou ter compreendido bem a essência do conselho de minha avó. Sua entrevista poderia ser resumida assim: “Pago meus impostos, sou uma cidadã, e agora querem me envolver em treta de racismo? Como assim, se fiz tudo direitinho?
Acontece que, no nosso mundo, uma pessoa branca que faz tudo direitinho é uma pessoa que não se descola da sua posição de opressora. Minha avó que me perdoe, mas é preciso fazer tudo ao contrário.

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