J. Flávio Vieira
Claro. Escuro.
Claro-escuro. Claro. A vida de Tatá da
Lamprada clonava os dias , numa alternância regular e milimetrada de alvoradas
e crepúsculos. Fora assim por mais de cinqüenta anos: um caçador de instantes,
um capitão-do-mato de escorregadios e fugazes momentos. É que a vida é tão fluida, tão
volátil que tantas e tantas vezes nem fica nos céus o rastro brilhante da
estrela cadente. Durava , na sua beleza, aquilo que se via : uma lamprada ! Tatá
capturava nas chapas instantes únicos: “Meninos, eu vi!” . No princípio, havia
hordas de outros caçadores nas praças da cidade, perambulando de rua em rua,
prontos a flagrar rostos, risos, casamentos, aniversários. A fotografia era uma
espécie de pirâmide para o povo, ali
plantavam, como os faraós, sua semente de imortalidade. Com os anos, os
concorrentes começaram a rarear. Foram surgindo outras máquinas mais modernas,
a fotografia passou a digital e, com o celular, a atividade de lambe-lambe
tornou-se totalmente obsoleta. Mantinha, no entanto, ainda um certo charme, despertava a curiosidade
dos transeuntes como um fóssil. Adquiriu aquele ar de Cult e retrô do vinil . Mas
só.
Tatá foi se
deixando ficar na atividade, primeiro porque estava velho para recomeçar com câmaras
mais modernas, depois porque percebia que suas imagens , embora em
preto-e-branco, eram muito mais bonitas e definidas que as da modernidade. E
mais permanentes! As dos celulares , bastava um tombo para antecipar o fim
inevitável. Também havia se afeiçoado à sua antiga e jurássica Bernardi. Ela
envelhecera com ele. A ferrugem e a química já haviam corroído as bandejas de
revelação, fixação e lavagem das fotografias, necessitara fazer alguns
consertos como em qualquer ser vivo. As fotos, no entanto, saiam perfeitas e
revelava-as numa pequena Câmara Escura que improvisara em casa. Todo dia,
quando Tatá saía para a praça da matriz, com seu tripé cada vez mais incômodo,
afixava as fotos reveladas , juntas com outras
mais antigas, nas laterais do caixote que servia de mostruário e de
outdoor. Enquanto os clientes não passavam para receber as encomendas, elas iam
ali servindo de publicidade. O menino
risonho montado no cavalinho; o casal de noivos apaixonados, com olhos brilhando, sem nem ligar para a
impermanência dos sentimentos; o defunto
esticado no caixão, com o olhar o vago de quem nada encontrou do outro lado do
muro.
Aos
poucos, sem que Tatá da Lamprada percebesse, sua vida se foi resumindo a suas
fotografias, estampadas na parede da sala, próximo aos santos da sua devoção,
acima do oratório. A esposa embarcara para a eternidade há cinco anos, no bote
de um aneurisma cerebral. Os filhos haviam partido para São Paulo, naquele
destino de judeu nordestino, procurando uma terra que nunca lhes havia sido
prometida. Nem davam notícia! A casa se foi povoando de fotografias: as novas , recém reveladas, esperando a entrega e as da
sala puxadas para sépia pela ação
inexorável dos anos. A sua existência , foi se resumindo, pouco a pouco, num daguerreótipo : a pose; a cabeça enfiada no pano preto; as
mãos metidas ,envoltas também em tecido negro, manipulando a chapa, na
dianteira do caixote;o fixador;o revelador; a lavagem; a secagem...
Tatá
já nem lembra bem, mas teria sido num fim de inverno, com um céu nublado,
desses que não só sombreiam a cidade, mas também nossa alma. Um rapaz alto procurou-o e pediu para ser
fotografado. Disse que ia fazer uma viagem e carecia de um retrato. Era uma figura diferente que não
parecia ser da cidade: vestia um paletó de linho branco, usava óculos escuros e
um chapéu panamá. O rapaz fez pose
pedante, de pé, com a mão direita recostada num velho banco da praça. Pediu uma
foto única, maior , 18X24 , pagou antecipado e combinou para vir pegar ali
mesmo, uma semana depois.
“ Da Lamprada” nunca fez uma clara relação de causa e efeito,
mas o certo é que, a partir daí, coisas inusitadas aconteceram. As fotos da
parede da sala começaram, a partir daquele dia, a se tornar cada dia mais
nítidas e brilhantes. A esposa, os pais , os filhos , os tios a cada dia iam se
tornando mais vívidos nas fotos. Havia apenas, uma exceção, a foto de Tatá ,
sozinho, na praça, em pleno exercício da função, paulatinamente foi-se
esmaecendo. Estranhamente, também, as fotos recentes que Tatá ia revelando, posicionadas
depois no mostruário do lambe-lambe, começaram a desbotar rápido, a perder as
definições, o que fazia com que aumentasse
a ansiedade do fotógrafo que temia, em não as entregando rápido, desaparecessem
as imagens reveladas. Teve, ainda, enormes dificuldades em revelar a foto do
rapaz do chapéu de panamá. Simplesmente a imagem não se aparecia . O rapaz,
também, não passou, para seu alívio, para pegar a foto no dia combinado. Pensou
Tatá que a culpa fosse dos reagentes da revelação, mas, mesmo trocando-os, os problemas continuaram.
Alguns
dias depois, como por encanto, a foto do rapaz finalmente se revelou. Ali
estava nítida e reluzente em cima da mesa da sala de jantar. E , dia após dia,
se foi tornando colorida, na mesma proporção que a sépia de Tatá da Lamprada
desvanecia-se na parede da sala, até se desminlinguir totalmente, sob a ação implacável de outro lambe-lambe : o do tempo.
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