Golvino Cetrônio acreditou, piamente, nos pés do padre, que
aquela cláusula de Eternidade , escrita sorrateiramente no seu contrato
nupcial, era perfeitamente factível. O
carrinho de rolimã do seu desejo havia derrapado nas curvas sinuosas de
Abertiza, uma morena com trinta palmos de frente e uns noventa de fundo. Os
amigos todos até lhe alertaram que aquilo era terra demais para seu caminhãozinho,
mas Golvino fincou pé:
---
Mulher e prejuízo só servem grandes ! Se
não der pra carregar a terra toda de uma vez, levo nem que seja em trinta
viagens !
O
certo é que Cetrônio aceitou a empreita, até mesmo porque descobriu, ali junto do altar, que tinha até à morte
para transportar aquela montanha de terra que o destino acabava de lhe
ofertar. O caminhãozinho três quartos de
Golvino aguentou firme o transporte por mais de trinta anos. Depois disso,
começou a ficar ronceiro, a saltar de marcha, a encharcar , até bater o pino.
Descobriu, então, que seria impossível
cumprir o trato. Abertiza que já era enorme , dobrou de volume e, a montanha
que recebera um dia para carreto, se transformara num Everest. Resolveu
dissolver o combinemos feito um dia no
pé do vigário, as cláusulas tinham se transformado em clausuras. Pensou que
desfazer o acordo seria tão fácil como assinar aquele livro grande do Cartório
. Qual nada! Só então percebeu a
necessidade de tantas testemunhas. Teve que vender os teréns e pagar a
indenização a D. Abertiza.
Golvino,
apesar de depenado, imaginou que fizera um bom negócio. Saíra mais leve no
bolso, mas também na alma. Beirava os
cinquenta, aquela idade em que já não existem mais tantos cartuchos na
cartucheira e muitas das balas restantes
ainda são de festim. Sem freio de mão, o
caminhãozinho de Cedrônio saiu dispinguelado, ladeira abaixo. Atropelou boa
parte das amigas de Abertiza, as colegas de trabalho da “Sapataria Pé
Lustroso” e as clientes mais atiradas. Construiu
, pouco a pouco, um harém particular. Com o passar do tempo, no entanto,
começou a enfastiar de tanta liberdade. Os relacionamentos, todos superficiais,
de lingeries nas cadeiras e não no guarda-roupas, já não preenchiam o vazio da sua alma. Todo mundo precisa de
alguém com quem possa contar além da cama redonda do Motel.
Eis que
Golvino percebeu que o caminhãozinho andava em círculos e tornara ao mesmo
ponto onde um dia começara. Precisava de alguém para dividir as angústias e os
prazeres, até porque, a balança, com a idade, tendia a pesar mais no primeiro
prato. A retomada da Bastilha não
parecia tarefa fácil. Lembrou do velório do casamento anterior e sentiu
calafrios. Ia começar tudo de novo ? Como suportar a putrefação do
relacionamento e suas incontáveis exumações ? Além de tudo, como encontrar a
noiva ideal ? As da sua geração estavam fora de prazo de validade e as mocinhas
traziam seu frescor, mas junto viriam as
Bandas de Forró, os Cantores Sertanejos, as Baladas, as Paredões. Além de
tudo, tinha a quase impossibilidade de
degustar sozinho o banquete e aquele risco
de ficar a testa como casca de jaca.
Pensou,
então, nas namoradas antigas, aqueles que vieram antes do casamento. Nunca, na
vida, a paixão arde com aquele furor da adolescência. Talvez porque o tanque de
combustível esteja cheio, pela tampa. Ademais, aqueles namoros , em geral,
ficaram pelo caminho, longe das vias de fato, deixando um gostinho de
quero-mais inalcançável. E foi aí que, um dia, posou-lhe na consciência, como
um pássaro, a imagem de Sinharinha. Linda, meiga, delicada, tinha sido uma das
suas paixões de Colégio. Tímido, se acercara, tentara , por diversas vezes, um
namoro, um romance, sem qualquer sucesso. Depois, a vida os afastara. Soube que
havia casado com um comerciante importante do Recife e para lá se mudara. Nunca
mais seus caminhos se haviam cruzado. Comentou um dia com os amigos a doce lembrança
e eles falaram de um artifício modernoso
: as Redes Sociais. Precisou da ajuda
dos universitários para adentrar na nova tecnologia. Analfabeto digital ,
diante de teclas e botões, parece mosca em Centro Cirúrgico. Caqueando PC´s e Facebook, deu com o perfil
de Sinharinha. Lá estava diante de uma
foto antiga, com aquele mesmo fascínio que um dia o tocara. Dizia-se novamente
solteira e viu algumas fotos de dois filhos, já taludos e seguindo voo próprio.
Golvino fez também uma página e encimou-a com uma foto dos tempos de colégio.
Armada a arapuca, a partir daí, fez
contato e terminaram em conversas longas
in box. Soube que se separara do
comerciante há uns cinco anos e que, há pouco, se aposentara como professora do
estado. As conversas foram se tornando quase que diárias e evoluíram para
telefonemas. Por fim, Golvino combinou para se encontrarem em Recife, no
Carnaval.
Chegou
na Veneza Brasileira, no sábado de Zé
Pereira, em meio ao frevo solto pelas ruas . Acertara o encontro defronte à Bodega do
Velho, em Olinda, à tarde, na Rua do
Amparo. Para facilitar a identificação Sinharinha prometeu ir de Colombina
e Golvino, já no clima, disse, pedindo licença a Noel, se fantasiaria de Pierrô Apaixonado. Cetrônio nem conseguiu pregar os
olhos pela ansiedade. Na hora de vestir a roupa, no entanto, apareceu um
primeiro probleminha. Levara uma fantasia de muitos anos atrás e, simplesmente,
não entrou naquele corpo antes de bengala e hoje tendendo mais a barril. Chateou-se um pouco, mas , com
ajuda de um primo, resolveu o impasse. Emprestaram-lhe uma longa e
psicodélica cabeleira de Caboclo de Lança . Completou o adereço com
a indefectível rosa nos lábios e os óculos escuros. Chegando lá , imaginou,
daria alguma desculpa esfarrapada e,
certamente, a simples troca do figurino não atrapalharia o script.
Partiu
para Olinda com o coração saltando mais que o ônibus nos seus solavancos. Subiu
a Ladeira da Boa Hora, seguiu a Rua do Amparo e, ao se aproximar da Bodega
do Velho, já percebeu, ao longe, a sua
Colombina. À medida que a distância diminuía, no entanto, um sobressalto lhe
foi invadindo o espírito. Aquela era Sinharinha ? Balofa, bochechuda, cabelos
grisalhos, no rosto não pés-de-galinha, mas todo o galinheiro? Que acontecera com a menina que um dia
conhecera ? Caíra de um avião? Sobrevivera a Colombina à explosão da Columbia ?
Por sua vez, Sinharinha, algo enfastiada, vendo a passagem do Caboclo de Lança,
pensou consigo:
---
Meu Deus ! Será que Golvino não chega ! Anda aparecendo cada assombração nessa
Rua do Amparo ! Isso não é um Caboclo de Lança, mas um Caboclo de Pança ! Xô
Satanás !
Golvino
ainda pensou em se identificar. De
repente , gelou ! O que ela vai pensar de mim ? Vai ter a mesma decepção ? Era
melhor ficar a lembrança dos tempos
passados, pensou nosso Pierrô , agora mais decepcionado que apaixonado. Que fiquem o
Golvino e a Sinharinha do perfil da Rede Social ! Preferiu seguir em frente, como um filho que
resolve não comparecer ao velório do pai, para manter na memória um retrato
vívido e fulgente , ao invés da máscara mortuária.
J. Flávio Vieira
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