TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

sexta-feira, 26 de junho de 2015

A Columbia explode na Rua do Amparo

Golvino Cetrônio acreditou, piamente, nos pés do padre, que aquela cláusula de Eternidade , escrita sorrateiramente no seu contrato nupcial, era perfeitamente factível.  O carrinho de rolimã do seu desejo havia derrapado nas curvas sinuosas de Abertiza, uma morena com trinta palmos de frente e uns noventa de fundo. Os amigos todos até lhe alertaram que aquilo era terra demais para seu caminhãozinho, mas Golvino fincou pé:
                                   --- Mulher e prejuízo só servem  grandes ! Se não der pra carregar a terra toda de uma vez, levo nem que seja em trinta viagens !
                                   O certo é que Cetrônio aceitou a empreita, até mesmo porque descobriu,  ali junto do altar, que tinha até à morte para transportar aquela montanha de terra que o destino acabava de lhe ofertar.  O caminhãozinho três quartos de Golvino aguentou firme o transporte por mais de trinta anos. Depois disso, começou a ficar ronceiro, a saltar de marcha, a encharcar , até bater o pino. Descobriu, então,  que seria impossível cumprir o trato. Abertiza que já era enorme , dobrou de volume e, a montanha que recebera um dia para carreto, se transformara num Everest. Resolveu dissolver o combinemos  feito um dia no pé do vigário, as cláusulas tinham se transformado em clausuras. Pensou que desfazer o acordo seria tão fácil como assinar aquele livro grande do Cartório . Qual nada!  Só então percebeu a necessidade de tantas testemunhas. Teve que vender os teréns e pagar a indenização a D. Abertiza.
                                   Golvino, apesar de depenado, imaginou que fizera um bom negócio. Saíra mais leve no bolso, mas também na alma.  Beirava os cinquenta, aquela idade em que já não existem mais tantos cartuchos na cartucheira  e muitas das balas restantes ainda  são de festim. Sem freio de mão, o caminhãozinho de Cedrônio saiu dispinguelado, ladeira abaixo. Atropelou boa parte das amigas de Abertiza, as colegas de trabalho da “Sapataria Pé Lustroso”  e as clientes mais atiradas. Construiu , pouco a pouco, um harém particular. Com o passar do tempo, no entanto, começou a enfastiar de tanta liberdade. Os relacionamentos, todos superficiais, de lingeries nas cadeiras e não no guarda-roupas,  já não preenchiam  o vazio da sua alma. Todo mundo precisa de alguém com quem possa contar além da cama redonda do Motel.
                                   Eis que Golvino percebeu que o caminhãozinho andava em círculos e tornara ao mesmo ponto onde um dia começara. Precisava de alguém para dividir as angústias e os prazeres, até porque, a balança, com a idade, tendia a pesar mais no primeiro prato.  A retomada da Bastilha não parecia tarefa fácil. Lembrou do velório do casamento anterior e sentiu calafrios. Ia começar tudo de novo ? Como suportar a putrefação do relacionamento e suas incontáveis exumações ? Além de tudo, como encontrar a noiva ideal ? As da sua geração estavam fora de prazo de validade e as mocinhas traziam seu frescor,  mas junto viriam as Bandas de Forró, os Cantores Sertanejos, as Baladas, as Paredões. Além de tudo,  tinha a quase impossibilidade de degustar sozinho o banquete e aquele risco  de  ficar a testa  como casca de jaca.
                                   Pensou, então, nas namoradas antigas, aqueles que vieram antes do casamento. Nunca, na vida, a paixão arde com aquele furor da adolescência. Talvez porque o tanque de combustível esteja cheio, pela tampa. Ademais, aqueles namoros , em geral, ficaram pelo caminho, longe das vias de fato, deixando um gostinho de quero-mais inalcançável. E foi aí que, um dia, posou-lhe na consciência, como um pássaro, a imagem de Sinharinha. Linda, meiga, delicada, tinha sido uma das suas paixões de Colégio. Tímido, se acercara, tentara , por diversas vezes, um namoro, um romance, sem qualquer sucesso. Depois, a vida os afastara. Soube que havia casado com um comerciante importante do Recife e para lá se mudara. Nunca mais seus caminhos se haviam cruzado. Comentou um dia com os amigos a doce lembrança e eles  falaram de um artifício modernoso : as Redes Sociais.  Precisou da ajuda dos universitários para adentrar na nova tecnologia. Analfabeto digital , diante de teclas e botões, parece mosca em Centro Cirúrgico.  Caqueando PC´s e Facebook, deu com o perfil de Sinharinha.   Lá estava diante de uma foto antiga, com aquele mesmo fascínio que um dia o tocara. Dizia-se novamente solteira e viu algumas fotos de dois filhos, já taludos e seguindo voo próprio. Golvino fez também uma página e encimou-a com uma foto dos tempos de colégio. Armada a arapuca, a partir daí,  fez contato e terminaram em conversas longas  in box.  Soube que se separara do comerciante há uns cinco anos e que, há pouco, se aposentara como professora do estado. As conversas foram se tornando quase que diárias e evoluíram para telefonemas. Por fim, Golvino combinou para se encontrarem em Recife, no Carnaval.
                                   Chegou na Veneza Brasileira,  no sábado de Zé Pereira, em meio ao frevo solto pelas ruas .  Acertara o encontro defronte à Bodega do Velho,  em Olinda, à tarde, na Rua do Amparo. Para facilitar a identificação Sinharinha prometeu ir de Colombina e  Golvino, já no clima,  disse, pedindo licença a Noel,  se fantasiaria de Pierrô  Apaixonado. Cetrônio nem conseguiu pregar os olhos pela ansiedade. Na hora de vestir a roupa, no entanto, apareceu um primeiro probleminha. Levara uma fantasia de muitos anos atrás e, simplesmente, não entrou naquele corpo antes de bengala e hoje tendendo  mais a barril. Chateou-se um pouco, mas , com ajuda de um primo, resolveu o impasse. Emprestaram-lhe uma longa e psicodélica  cabeleira  de Caboclo de Lança . Completou o adereço com a indefectível rosa nos lábios e os óculos escuros. Chegando lá , imaginou, daria alguma desculpa  esfarrapada e, certamente, a simples troca do figurino não atrapalharia o script.
                                   Partiu para Olinda com o coração saltando mais que o ônibus nos seus solavancos. Subiu a Ladeira da Boa Hora,  seguiu  a Rua do Amparo e, ao se aproximar da Bodega do Velho, já  percebeu, ao longe, a sua Colombina. À medida que a distância diminuía, no entanto, um sobressalto lhe foi invadindo o espírito. Aquela era Sinharinha ? Balofa, bochechuda, cabelos grisalhos, no rosto não pés-de-galinha, mas todo o galinheiro?  Que acontecera com a menina que um dia conhecera ? Caíra de um avião? Sobrevivera a Colombina à explosão da Columbia ? Por sua vez, Sinharinha, algo enfastiada, vendo a passagem do Caboclo de Lança, pensou consigo:
                                   --- Meu Deus ! Será que Golvino não chega ! Anda aparecendo cada assombração nessa Rua do Amparo ! Isso não é um Caboclo de Lança, mas um Caboclo de Pança ! Xô Satanás !
                                   Golvino ainda pensou em  se identificar. De repente , gelou ! O que ela vai pensar de mim ? Vai ter a mesma decepção ? Era melhor ficar a lembrança  dos tempos passados, pensou nosso Pierrô , agora  mais decepcionado que apaixonado. Que fiquem o Golvino e a Sinharinha do perfil da Rede Social !  Preferiu seguir em frente, como um filho que resolve não comparecer ao velório do pai, para manter na memória um retrato vívido e fulgente , ao invés da máscara mortuária.


J. Flávio Vieira 

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