DOM, 09/08/2015 - 10:29
Uma crônica de 2006, para o dia dos pais
Antes dos 13 anos, declarei guerra a meu pai. Eu passara para o terceiro
ano do ginásio, mudou o irmão Marista titular da classe, e tive a oportunidade
de tirar o primeiro lugar, algo que não conseguira nos dois anos anteriores.Fui
para casa de boletim na mala e peito estufado, e o velho nem ligou. À noite, no
encontro de pais e alunos no Marista, um pai chegou perto de nós, saudou o meu
feito e indagou se manteria a colocação. Seu Oscar respondeu irritado:
"Problema dele". Anos depois, Chafik, seu melhor amigo, me contou que
ele não se conformara com minha decisão de, aos 12 anos, me tornar jornalista,
e não seu sucessor na Farmácia Central.
Desde aquela noite de 1963 um muro ergueu-se entre nós. No mês seguinte
caí para 7º da classe, no terceiro mês para 15º, do quarto mês em diante fui o
último para o todo e sempre. Puni o seu Oscar a cada prova mal feita, a cada
gazeta engendrada, a cada rebelião contra os irmãos. Mas nos momentos cruciais,
consegui o seu apoio, especialmente no dia em que o reitor Lino Teódulo foi à
minha casa com acusações falsas, em represália à minha militância estudantil.
Disse-lhe na cara que ele estava mentindo, e meu pai me apoiou.
Nem isso quebrou as nossas barreiras. Eu chegava em casa antes de meu
pai chegar, refugiava-me na tia Rosita na hora do jantar, depois, quando ele
descia de novo para fechar a farmácia corria para casa, para dormir antes que
ele voltasse de vez. Mas de manhã bebia cada som que ele emitia, cada gesto de
ansiedade, andando para lá e para cá no corredor de casa, os gemidos de quem
carrega os fardos do mundo. E me punia por não poder ajudá-lo.
Ao longo da vida, guardei em frascos de cristal os poucos momentos de
emoção que consegui compartilhar com ele, como o garimpeiro que procura a
pepita na bateia. Registrei seu choro na morte da tia Marta, as lágrimas na
missa de sétimo dia do vô Issa, seu sogro, a última ida a Poços de Caldas, para
ser comunicado da morte de seu melhor amigo, e seu olhar quando divisou a
cidade ao longe. Mais tarde, acompanhei seu silêncio quando tia Rosita morreu.
Não contamos nada para ele, e ele nunca mais perguntou dela, para não ouvir a
resposta que temia.
E me lembrei para sempre do dia em que o critiquei na casa do vô Issa
por ter comprado um bilhete de loteria enquanto estávamos acampados por lá,
procurando casa para alugar em São Paulo. Ele saiu para a rua, fui atrás e pedi
a Deus as palavras que me permitissem explicar o que sentia. Abracei-o, aquele
homem alto, chorando, e falei, falei e falei, disse-lhe que ele continuava o
centro da família e que minha preocupação era apenas para que não demonstrasse
desespero indo atrás de miragens. E só serenei quando ele se acalmou e me olhou
com olhar de pai agradecido.
O segundo derrame chegou doze anos depois do primeiro. Só depois de
morto e enterrado comecei minha longa caminhada atrás de meu pai. Passei a
buscá-lo em cada contemporâneo, em cada amigo. Com as velhas senhoras de Poços
descobri o galanteador, com os fregueses mais humildes da farmácia, uma
generosidade que nunca pressenti.
Com os amigos, a pessoa aberta e alegre que submergiu com a crise da
farmácia, mas que continuou sendo o mais gentil dos poçoscaldenses.
E quanto mais o buscava passava a descobrir o inverso, a busca que ele
fazia de mim. Diariamente meu pai levava minhas irmãs ao Colégio São Domingos,
e, na volta, pegava um amigo meu para almoçar e saber notícias minhas de São
Paulo. Antonio Cândido me falou do orgulho com que ele relatava minhas
primeiras reportagens. O padre Trajano me contava das notas que levava ao
"Diário de Poços" relatando cada vitória em festival, em concurso literário.
E minha mãe me contou que, no auge da minha crise de adolescência, ela perdeu a
fé no meu futuro, e ele acreditou.
Às vezes sinto o travo da última conversa que não houve, dos beijos que
não lhe dei. Mas em algumas noites o sinto ao meu lado, daquele modo silencioso
com que ficava com a tia Rosita, sem nada falar, porque palavras eram
desnecessárias. Apenas me olhando com aquele olhar de quem finalmente se fez
entender.
Parabéns pelo dia e pelo texto...nós sempre somos assim: procurando os rastros dos pais...
ResponderExcluirAbraço do Pedra
www.pedradosertao.blogspot.com.br
O texto é dO JORNALISTA LUIS NASSIF.
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