terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Je suis Charlie ?

Imaginem essas cenas retiradas do dia a dia do nosso noticiário. Rapazinho, no sul do país, revoltado com o fim do relacionamento decretado pela namorada, resolve, em represária, jogar na internet fotos íntimas do casal, tiradas no Motel em tempos de bem aventurança. O pai da mocinha, revoltado coma exposição pública e definitiva da filha, faz justiça com as próprias mãos, sapecando vários tiros no jornalista improvisado. Em Goiana, Pernambuco, uma lojinha de biquínis terminou pregando uma peça em várias veranistas. O adolescente, filho da dona do comércio, instalou uma câmera escondida no provador e filmou inúmeras mocinhas peladas, na troca de roupa. Depois disso, preparou um CD com as imagens e saiu vendendo em pontos estratégicos: “Garotas Quentes do Verão 2012”. Tudo acabou quando um pai comprou o CD e lá se deparou com a filha em trajes de Eva. O caso foi parar na justiça , os pais e o autor do delito fugiram,  temendo linchamento.
                                   Os dois episódios são típicos desses tempos em que todas as barreiras da individualidade terminaram por ruir. Claro que, em nome da liberdade de pensamento e expressão,  muitos, certamente, saltarão com a justificativa de que é justa a veiculação das fotos. Quem se sentir ferido ou lesado deve procurar a justiça em busca de ressarcimento pelo dano causado.  A atitude do povo goianense e do pai da mocinha da internet em procurar , com força de trabuco, resolver as querelas soam como coisas de Neanderthais. Aprofundemos um pouco mais a questão. Pensem no suplício de todos  lesados , trafegando pela lentidão irritante da justiça brasileira. Oito anos depois, quem sabe, poderá sair uma sentença indenizatória favorável aos danos morais perpetrados pelo namorado abusado e pela lojinha de biquínis. O bolso, como sendo a parte mais sensível do corpo, certamente pesará, pedagogicamente, na consciência dos implicados. Mas as fotos, uma vez veiculadas, continuarão a se espalhar como vírus Ebola e o dano continuará a se fazer permanentemente. Os novos namorados da mocinha poderão receber as imagens pornográficas, como bulling,  e as garotas quentes do verão 2012 continuarão fervendo em outros verões, com cd´s copiados e enviadas imagens pelos tablets e smartphones. Quem lhes devolverá , um dia, a honra eternamente maculada ?
                                   A atitude dos linchadores, claro, pode parecer primária e tribal. Colocando o caso em cada um de nós, no entanto, vem a pergunta : Você teria uma conduta diferente, como pai ?  Ficaria quietinho, procuraria e justiça e esperaria, pacientemente, pelo fim do processo, mesmo vendo o vírus se alastrando, dia a dia ?
                                   Esta questão é extremamente atual. Há poucos dias, os jornalistas da Revista humorística francesa “Charlie Hebdo” foram executados, sumariamente, por três islâmicos que se sentiram ofendidos por charges seguidas retratando ( o que é proibido pela sua religião) e  detratando o profeta Maomé. As repercussões internacionais foram imensas após a barbárie. Líderes mundiais se reuniram na França numa imensa marcha  a favor da liberdade de pensamento e de expressão. De lado se punham os jornalistas injusta e barbaramente executados e, do outro, os vilões: o Islamismo tido como religião brutal e atrasada, totalmente dessincronizada com os tempos modernos em que vivemos.
                                   Nada justifica o massacre, claro, mas é bom, sempre, refletir sobre suas raízes mais profundas. A França possui o maior contingente de maometanos da Europa – 10% da sua população. Vieram, praticamente todos, das antigas colônias francesas, da África e Ásia, sugadas pelos insaciáveis canudos do Colonialismo. Na França são vistos como cidadãos de segunda classe, mesmo com cidadania legal francesa. Carregam, consigo, aquele travo das minorias sapateadas. Não têm o mesmo acesso ao emprego, ao lazer, à educação em meio a esse Apartheid silencioso. São proibidos de assumir aainda, publicamente, seus símbolos religiosos. Quando dos primeiros ataques da Charlie Hebdot , entraram na justiça  francesa, contra o que consideravam uma agressão e perderam fragorosamente em nome da Liberdade de Expressão, embora se imagine que, por trás de tudo, havia decisões eivadas do mesmo preconceito que lhes atravanca o dia a dia. A revista, claro, tem posições francamente iconoclastas e ataca não só o Islã, mas todas as outras grandes religiões mundiais. Daí vem a perigosa conclusão de que o Islã é violento e sanguinário, pois as outras não reagem da mesma maneira.  O Islamismo, é bom lembrar, é a mais jovem das grandes religiões, talvez, por isso mesmo, ainda esteja em tempos de depuração, no Século XII, para ser mais preciso. Há um passado sombrio que acompanha a todas : A Inquisição, As Cruzadas, a dizimação das comunidades indígenas, o Holocausto, As oferendas aplacatórias da ira divina  dos Incas e Aztecas.
                                   A grande encruzilhada termina por aparecer. Tem ou não limite a liberdade de expressão ? Tudo pode ser veiculado e a regulação será feita , tão-somente, pela justiça ? A imprensa se queixa que lhes estão querendo infringir marco regulatório. Mas ela é livre ? Ela não é manietada por seus patrocinadores e pelo Capital que a sustenta ? Imaginem se a Revista Carta Capital, a dois dias antes da eleição presidencial, publicasse uma reportagem mostrando que o candidato Aécio Neves faria parte do Cartel de Medellin. Imaginem ainda que esta  notícia, infundada, o fizesse perder a eleição. Claro que ele entraria na justiça e daqui a uns sete anos terminasse ganhando a questão e recebendo uma indenização. Mas seu mandato perdido quem o ressarciria? E seus eleitores que teriam sido burlados como seriam ressarcidos ?

                                   Voltando para os princípios universais da Ética não me parece que essa pretensa Liberdade de Expressão se enquadre em nenhum deles. A conduta do Charlie Hebdo pode ser usada como uma Lei Universal ? Estaria essa Liberdade beneficiando o maior número de pessoas possível ? Entendo que há limites éticos sim, nessa Liberdade e que precisam ser regulados não só pela justiça, mas pela própria sociedade. O respeito às diferenças, às opções sexuais, à religião ou ao ateísmo e o combate indiscriminado a qualquer tipo de preconceito são direitos inalienáveis dos seres humanos. Emocionei-me e chorei com o massacre dos humoristas do Charlie Hebdot, nada justifica aquele ato terrível. A agressão reiterada, no entanto, a minorias eternamente escravizadas poderiam ter sido evitadas, a  Sociedade Francesa já vem se responsabilizando secularmente por essa atitude. Queria que o humor continuasse a me fazer refletir sobre a vida , sim, mas também que me proporcionasse sua mais perfeita função : Rir.

J. Flávio Vieira

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