Imaginem essas cenas retiradas do dia a dia do nosso
noticiário. Rapazinho, no sul do país, revoltado com o fim do relacionamento
decretado pela namorada, resolve, em represária, jogar na internet fotos
íntimas do casal, tiradas no Motel em tempos de bem aventurança. O pai da
mocinha, revoltado coma exposição pública e definitiva da filha, faz justiça
com as próprias mãos, sapecando vários tiros no jornalista improvisado. Em
Goiana, Pernambuco, uma lojinha de biquínis terminou pregando uma peça em
várias veranistas. O adolescente, filho da dona do comércio, instalou uma
câmera escondida no provador e filmou inúmeras mocinhas peladas, na troca de
roupa. Depois disso, preparou um CD com as imagens e saiu vendendo em pontos
estratégicos: “Garotas Quentes do Verão 2012”. Tudo acabou quando um pai
comprou o CD e lá se deparou com a filha em trajes de Eva. O caso foi parar na
justiça , os pais e o autor do delito fugiram, temendo linchamento.
Os
dois episódios são típicos desses tempos em que todas as barreiras da
individualidade terminaram por ruir. Claro que, em nome da liberdade de
pensamento e expressão, muitos,
certamente, saltarão com a justificativa de que é justa a veiculação das fotos.
Quem se sentir ferido ou lesado deve procurar a justiça em busca de
ressarcimento pelo dano causado. A
atitude do povo goianense e do pai da mocinha da internet em procurar , com
força de trabuco, resolver as querelas soam como coisas de Neanderthais.
Aprofundemos um pouco mais a questão. Pensem no suplício de todos lesados , trafegando pela lentidão irritante
da justiça brasileira. Oito anos depois, quem sabe, poderá sair uma sentença
indenizatória favorável aos danos morais perpetrados pelo namorado abusado e
pela lojinha de biquínis. O bolso, como sendo a parte mais sensível do corpo,
certamente pesará, pedagogicamente, na consciência dos implicados. Mas as
fotos, uma vez veiculadas, continuarão a se espalhar como vírus Ebola e o dano
continuará a se fazer permanentemente. Os novos namorados da mocinha poderão
receber as imagens pornográficas, como bulling, e as garotas quentes do verão 2012 continuarão
fervendo em outros verões, com cd´s copiados e enviadas imagens pelos tablets e
smartphones. Quem lhes devolverá , um dia, a honra eternamente maculada ?
A
atitude dos linchadores, claro, pode parecer primária e tribal. Colocando o
caso em cada um de nós, no entanto, vem a pergunta : Você teria uma conduta
diferente, como pai ? Ficaria quietinho,
procuraria e justiça e esperaria, pacientemente, pelo fim do processo, mesmo
vendo o vírus se alastrando, dia a dia ?
Esta
questão é extremamente atual. Há poucos dias, os jornalistas da Revista
humorística francesa “Charlie Hebdo” foram executados, sumariamente, por três
islâmicos que se sentiram ofendidos por charges seguidas retratando ( o que é
proibido pela sua religião) e detratando
o profeta Maomé. As repercussões internacionais foram imensas após a barbárie.
Líderes mundiais se reuniram na França numa imensa marcha a favor da liberdade de pensamento e de
expressão. De lado se punham os jornalistas injusta e barbaramente executados
e, do outro, os vilões: o Islamismo tido como religião brutal e atrasada,
totalmente dessincronizada com os tempos modernos em que vivemos.
Nada
justifica o massacre, claro, mas é bom, sempre, refletir sobre suas raízes mais
profundas. A França possui o maior contingente de maometanos da Europa – 10% da
sua população. Vieram, praticamente todos, das antigas colônias francesas, da
África e Ásia, sugadas pelos insaciáveis canudos do Colonialismo. Na França são
vistos como cidadãos de segunda classe, mesmo com cidadania legal francesa.
Carregam, consigo, aquele travo das minorias sapateadas. Não têm o mesmo acesso
ao emprego, ao lazer, à educação em meio a esse Apartheid silencioso. São
proibidos de assumir aainda, publicamente, seus símbolos religiosos. Quando dos
primeiros ataques da Charlie Hebdot , entraram na justiça francesa, contra o que consideravam uma
agressão e perderam fragorosamente em nome da Liberdade de Expressão, embora se
imagine que, por trás de tudo, havia decisões eivadas do mesmo preconceito que
lhes atravanca o dia a dia. A revista, claro, tem posições francamente
iconoclastas e ataca não só o Islã, mas todas as outras grandes religiões
mundiais. Daí vem a perigosa conclusão de que o Islã é violento e sanguinário,
pois as outras não reagem da mesma maneira. O Islamismo, é bom lembrar, é a mais jovem das
grandes religiões, talvez, por isso mesmo, ainda esteja em tempos de depuração,
no Século XII, para ser mais preciso. Há um passado sombrio que acompanha a
todas : A Inquisição, As Cruzadas, a dizimação das comunidades indígenas, o
Holocausto, As oferendas aplacatórias da ira divina dos Incas e Aztecas.
A
grande encruzilhada termina por aparecer. Tem ou não limite a liberdade de
expressão ? Tudo pode ser veiculado e a regulação será feita , tão-somente,
pela justiça ? A imprensa se queixa que lhes estão querendo infringir marco
regulatório. Mas ela é livre ? Ela não é manietada por seus patrocinadores e
pelo Capital que a sustenta ? Imaginem se a Revista Carta Capital, a dois dias
antes da eleição presidencial, publicasse uma reportagem mostrando que o
candidato Aécio Neves faria parte do Cartel de Medellin. Imaginem ainda que
esta notícia, infundada, o fizesse
perder a eleição. Claro que ele entraria na justiça e daqui a uns sete anos
terminasse ganhando a questão e recebendo uma indenização. Mas seu mandato
perdido quem o ressarciria? E seus eleitores que teriam sido burlados como
seriam ressarcidos ?
Voltando
para os princípios universais da Ética não me parece que essa pretensa
Liberdade de Expressão se enquadre em nenhum deles. A conduta do Charlie Hebdo
pode ser usada como uma Lei Universal ? Estaria essa Liberdade beneficiando o
maior número de pessoas possível ? Entendo que há limites éticos sim, nessa
Liberdade e que precisam ser regulados não só pela justiça, mas pela própria sociedade.
O respeito às diferenças, às opções sexuais, à religião ou ao ateísmo e o
combate indiscriminado a qualquer tipo de preconceito são direitos inalienáveis
dos seres humanos. Emocionei-me e chorei com o massacre dos humoristas do
Charlie Hebdot, nada justifica aquele ato terrível. A agressão reiterada, no
entanto, a minorias eternamente escravizadas poderiam ter sido evitadas, a Sociedade Francesa já vem se
responsabilizando secularmente por essa atitude. Queria que o humor continuasse
a me fazer refletir sobre a vida , sim, mas também que me proporcionasse sua mais
perfeita função : Rir.
J. Flávio Vieira
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