É isso mesmo: é “nós contra eles”
( Edward Magro)
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Atualizado
em 1 de julho de 2025 às 12:28
Nas últimas legislaturas, a escolha do presidente
da Câmara, no Brasil, não tem sido exatamente um exercício democrático. Tem
sido, antes de tudo, um rodízio no comando de um negócio sujo — muito sujo — e
altamente lucrativo.
Sai Arthur Lira, entra Hugo Motta. Antes deles,
Eduardo Cunha. A linha de sucessão é nítida: um gângster forma o outro e
passa-lhe o bastão da rapinagem. Motta foi criado em cativeiro por Cunha. Foi
adestrado, moldado, lapidado para manter a engrenagem da impunidade funcionando
com precisão. E funcionando muito bem, sobretudo para quem jamais pagou
impostos. Nem pretende.
A sucessão gangsteriana garante a eles a sobrevida
pelo exercício contínuo da impunidade. Hoje, mesmo sem cargo, Eduardo Cunha,
operador do golpe de 2016, desfila livremente pelos corredores do Congresso
como uma celebridade da delinquência institucional: a prova viva de que, no
Brasil, para defender os endinheirados, o crime compensa.
Já foi condenado, cassado, denunciado. Mas lá está,
lépido, oferecendo conselhos a quem quiser aprender como delinquir com
elegância, e sair ileso. É um farol. Uma luz negra que guia os caminhos do
centrão e do bolsonarismo. Pelo que consta, Lira, mesmo atolado em denúncias,
continua sendo o crupiê da jogatina parlamentar.
Desde o golpe que alçou Michel Temer à presidência,
o Congresso deixou de ser uma arena política para se tornar filial do sistema
financeiro. A pauta é ditada por banqueiros, fundos de investimento, rentistas
e, agora também, pelos donos das casas de apostas.
O voto virou ativo. O deputado, passivo. Não é
metáfora: o capital financeiro investe em campanhas e, como não há almoço
grátis, exige retorno. Lucro, aliás, é o que move cada vírgula aprovada sob a
maravilha arquitetônica de Niemeyer.
Não por acaso, quando se discutiu a taxação dos BBB
— Bancos, Bilionários e Bets — o Congresso respondeu com um “não”
silenciosamente retumbante. Um “não” obediente, prestativo, quase submisso. Um
“não” calado, sem explicações. Apenas “não”. E o eleitor que aguente.
Afinal, o Brasil tem um dos povos mais tributados e
uma das elites mais isentas do planeta. E isso, curiosamente, não constrange
nossos rentistas; mesmo num mundo em que há bilionários clamando por tributação
de suas próprias fortunas.
Para garantir o resultado da votação, realizada nas
altas horas da noite, enquanto o trabalhador dormia para enfrentar o dia
seguinte, os jornalões e as emissoras de TV fizeram o que sempre fazem: durante
uma semana inteira, manchetes e colunistas bradaram contra a “insegurança
jurídica” de tributar os ricos.
A tal “punição ao mérito” foi elevada à condição de
tragédia nacional. Nas redes, a milícia digital de perfis falsos contratados
despejou memes ridículos sobre o “perigo comunista” de cobrar imposto de quem
lucra bilhões sem dar nada em troca.
Tudo parecia alinhado para mais uma encenação do
velho teatro neoliberal. Mas, desta vez, algo saiu do script. O governo — Lula,
Haddad e companhia — rompeu o silêncio e foi à luta. Explicou, confrontou,
desmascarou. E o caldo entornou. A opinião pública, geralmente tratada como
distraída, percebeu o truque. E foi o bastante para disparar o alarme entre os
donos do poder.
A reação veio pelas mãos sedosamente hidratadas de
João Doria. O lobista do atraso convocou uma reunião de emergência com
“empresários” — leia-se, financistas de punho rendado, especialistas em viver
do suor e do sangue dos outros — para exibir apoio a Hugo Motta e animar os
deputados a seguirem firmes em sua disposição de usar o Legislativo para
institucionalizar, com toda a liturgia legal, o assalto ao orçamento público.
Era preciso garantir que o plano de continuidade
não escorregasse na lama da opinião popular. Acalmar o mercado. Manter o
Congresso na coleira. E deixar claro, para o cidadão comum, quem é que manda
ali dentro.
Para mim, esse convescote apressado é, ao que tudo
indica, um sinal de fraqueza. Eles sentiram o golpe. Estão frágeis. Tenho para
mim que, pela primeira vez em muito tempo, o capital hesita. Pela primeira vez,
os ventríloquos do poder temem que o público resolva ouvir sua própria voz.
Ontem, a mídia deu palco para Hugo Motta anunciar
um rompimento com Haddad, acusando o governo de estimular o discurso do “nós
contra eles”. Pois que seja! É isso mesmo. De um lado, o povo que paga impostos
e mal usufrui dos serviços públicos; de outro, uma elite rapinante que se
apropria da parte mais robusta do orçamento nacional.
Que bom que o governo foi direto ao ponto. Que
ótimo que Motta acusou o golpe — e partiu para a chantagem aberta.
É agora. Hora de irmos às ruas. De lembrar que,
desde 1889, quando a República foi proclamada para livrar a elite agrária dos
impostos imperiais, os ricos deste país vivem sob um regime de exceção fiscal.
O tempo passou. A lógica ficou. Até hoje, o Brasil segue sendo um dos raros
lugares onde um bilionário paga, proporcionalmente, menos imposto que o camelô
da esquina.
Essa escolha não é apenas econômica. É moral. Ou
seguimos aceitando que o país seja governado por prepostos do capital, ou
retomamos as rédeas da democracia. Hugo Motta não é novidade. É apenas o novo
gerente da velha rapinagem. Mas eles não são eternos.
Eles têm o dinheiro. Nós somos o número. Se
ousarmos, podemos derrotá-los.