“ Pegar no estame do som
Ser a voz de um lagarto escurecido
Abrir um descortínio para o arcano.”
Manoel de Barros
Ser a voz de um lagarto escurecido
Abrir um descortínio para o arcano.”
Manoel de Barros
Início dos anos 70: pleno governo Médici. Um Médici que nada tinha a ver com aquele mecenas do Renascimento. Véu de chumbo cobrindo toda a vida cultural brasileira. Em Brasília, políticos eram cassados à mancheias e nas ruas estudantes eram caçados , num abominável e sanguinário safári.Em meio ao desbaratamento de toda esquerda brasileira, a nossa intelectualidade parecia atônita, à deriva. Incrivelmente os primeiros anos da década de 60 tinham sido pródigos para cultura brasileira: a expansão da Bossa Nova, o Cinema Novo, a arquitetura de Niemeyer. Mesmo após o golpe de 1964, permaneceram algumas esperanças até a o AI5. Mesmo assim, na segunda metade dos anos 60 floresceram os Festivais da Record e os FIC que terminaram por gerar a última grande geração de músicos/compositores brasileiros. De repente, aquela plúmbea névoa, obscurecendo todo cenário cultural da nossa terra. Os artistas passaram a se expressar por ínvias e complicadas senhas, numa burla contínua à instituição da censura prévia.Era um eterno jogo de esconde-esconde.
Exatamente nesta época, inspirado nos Festivais do sul, floresceu dentro do Movimento de Juventude do Crato, a idéia de criar um Festival Regional da Canção aqui em nossa cidade. Juazeiro já conseguira fazer um primeiro , com grandes dificuldades. A receptividade foi muito grande: abria-se uma fresta para canalizar tanto desejo reprimido, tanto grito preso na garganta, principalmente no meio estudantil. Os Festivais foram se repetindo anualmente e chegaram a 9, encontrando possivelmente seu ápice no VI Festival em 1975. Naquele ano os jurados eram quase todos maestros reconhecidos no Nordeste e estiveram presentes o Secretário de Cultura do Estado e escritor Otacílio Colares da Academia Cearense de Letras. De tão importante o evento passou a fazer parte do Roteiro Turístico Nacional. Já no final dos anos 80 e inicio dos 90, seguiram-se mais três outros, estes já com com nova roupagem e alcunhados de “CHAMA”. A partir daí, a chama arrefeceu, mas vicejaram muitos outros brotos na região: em Juazeiro, Barbalha e Missão Velha que mantém a tradição e já se encontra na 16A. edição do seu Festival.
Fazem-se críticas fáceis e bem cabíveis aos Festivais. Que é um modelo arcaico, que rapidamente enfastia e afasta o público, que cria uma competição terrível , instigando o narcisismo, afastando grupos e compositores, impedindo que possam partilhar suas experiências conjuntamente. Sem falar na modernização mais recente dos festivais, empreendida pela mídia e pela indústria fonográfica, montando eventos apenas para pesquisar tendências e pasteurizar/esterilizar definitivamente a cultura musical. Infelizmente todas estas críticas são pertinentes e fundamentadas, mas , por outro lado, regionalmente, não se encontrou ainda nenhuma outra fórmula eficiente de divulgação dos artistas locais e de incentivo a suas tortuosas trajetórias, em busca de uma arte pura e latejante. Nos dez Festivais Regionais da Canção revelamos o que ainda temos de melhor na nossa música caririense: Salatiel( Grupo Cacto), Pachelly Jamacaru, Zé Nilton Figueiredo, José Roberto Brito, Juvenal, Luiz Fidelis- Stênio Diniz( Grupo Matulão), Alemberg Quindins, Cleivan Paiva, Mané D’Jardim, Magérbio-Marigélbio Lucena( Grupo Gitirana), George Lucetti, Audízio, Paulinho Chagas, Rosemberg Cariri, Jefferson Albuquerque, Osvaldo-Marcos Pinheiro( Grupo Kirimbau), Geraldo Urano, Caio-Graco, Paulinho-Marcos Damasceno( Grupo Os Urubus), João do Crato e o maior compositor caririense Abidoral Jamacaru, sem falar em inúmeros outros nomes que por não serem aqui citados, não deixam de ter enorme importância no cenário cultural da nossa região.
Bons ou ruins , os Festivais são apenas um reflexo do processo artístico em que estamos vivendo. Por mais deficiência que se lhes aponte , no interior do país, não se encontrou ainda maneira mais eficaz de divulgar os valores locais, de alavancar ao menos temporariamente seus projetos, de reunir e confrontar tendências. Como nos terríveis tempos da ditadura militar, os Festivais ainda hoje são uma fresta salvadora , não mais contra o arbítrio da censura, mas contra a ditadura da indústria fonográfica e da mídia que obriga o povo a engolir sapo , assegurando a todo momento que tem gosto de caviar.
A Secretaria de Cultura de Crato -- nos dias 15,16 e 17 de Junho--, reascende a chama e promove o seu FESTIVAL CARIRI DA CANÇÃO, justamente aqui no Crato : o cadinho em ebulição da Cultura do estado. O evento acontecerá na REFESA, o mais charmoso espaço cultural do Cariri, um legado da atual administração municipal. Críticas favoráveis e desfavoráveis haverão certamente de surgir e isso apenas mostrará a efervescência que é imprescindível para o florescimento da Arte.
É pegar no estame do nosso som e despetalar a rosa da poesia!
J. Flávio Vieira
3 comentários:
Zé Flávio, parabéns pela análise lúcida e pertinente a respeito deste fenômeno velho e novo, ao mesmo tempo. Festival, festivaia, festa, baco e vestal.
Vale a pena usar a pena e não ter pena...
Precisa só ver quais "cidadãos" do Crato irão levantar a bundinha da cadeira e se deslocar até o Festival, porque há aqui uma tradição de se fazer eventos artísticos e as pessoas simplesmente não comparecerem, depois reclamam. Conheço centenas de pessoas do Granjeiro que preferem assistir espetáculos em outras capitais do que sair e dar uma voltinha no Crato, achando eles que no Crato nada acontece. Ja ouvi isso da boca de uma pessoa muito conhecida, certa vez se admirando que há uns 10 anos, nao sabia ela que eu tocava MPB na Choppana ( passei 4 anos lá ), e essa pessoa disse que nao foi por não saber. ISSO É INCRÍVEL...é mais crível a mentira.
No momento em que se fazem tantos e tantos shows no Centro Cultural Banco do Nordeste, toda semana tem... tem gente aqui do Crato que sequer pisou o pé no CCBN...mas esses ditos ainda se dizem defensores da cultura...
ABSURDO o que acontece nessa cidade. É um grande desprestígio aos artistas em geral!
Dihelson Mendonça
Você começou a matéria com uma citação de Manoel de Barros ... Ele é muito apresentado , em especiais na TV Cultura. Dele sou fã incondicional. Ô velhinho chic de inspitação !
Diz que , a gente tem que desaprender 8 h por dia , pra ser poeta ; que se inspira na linguagem infantil , e no homem da roça... No simples, a métáfora é sempre nova , e surpreendente.
"Não se abre um amanhecer , na faca !"
Vamos torcer para que o evento tenha sucesso !
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