Existem relatos tão comoventes que até nos esquecemos do relator mas nos lembramos integralmente dos fatos. Alguém, aí por volta da 18 horas do antigo tempo dos anos 60, quando o Crato era outro, menos carros, as motocicletas haviam sido esquecidas da indústria de veículos. Alguém vinha da praça da Sé em direção ao Pimenta. A cidade escurece mais cedo, a chapada do Araripe não é em vão, abriga o sol alguns minutos antes para que ele volte com muito mais força de retorno. No Crato, em menos de meia hora, entre as 17 e as 18 horas, começava um entreato sem gentes nas ruas, todas em suas casas iluminadas. E o referido alguém seguia já próximo da gráfica do jornal Ação, quase chegando ao colégio Santa Teresa.
Se estivermos no centro de uma multidão e de repente passarmos para outro ambiente com apenas alguma centena, temos a sensação de vazio. Não é bem vazio, mas o contraste assim nos faz. Como a pessoa que seguia em frente ao colégio Santa Teresa sentia-se. A cidade estava vazia. Era uma cidade com o sentimento da solidão. A solidão do ângelus. Ou próximo dele. Naquele momento fazia um silêncio só compreendido pelos que estiveram no intenso dos afazeres diversos de uma cidade no momento final de sua fervura.
Alguém seguia em direção ao Pimenta, numa solidão de ouças, de vistas esmaecidas no lusco-fusco, a sensação de um frio noturno, as pisadas na calçada como voz única. Alguém se sentia muito só. Todas as portas do comércio haviam fechado, os cinemas terminadas as sessões vesperais, os moradores da periferia já haviam ido, ninguém mais se encontrava no café Crato e a Praça estava como um terreiro no silêncio que antecede, imediatamente, a chegada do sanfoneiro e dos enlouquecidos forrozeiros.
E foi do centro daquela solidão que os acordes de um violão encheram a rua com o mesmo volume de sentimentos que, na alma daquele relator, transbordou em emoção. Como um feitiço os passos seguintes levitaram sobre o indizível piso da calçada. Era uma rua, mas ao mesmo que era, também não era, pois não era pano de fundo e nem presença. Era, também, indizível. Apenas a melodia, não mais toques ou acordes, mas um todo que substituía o ambiente urbano por algo que era a própria narrativa de que a sobrevivência se encontra num estágio abaixo daquilo que alguém ouvia.
E no movimento que a música o levava esta pessoa foi se aproximando de um homem, de pijamas, ele e o entardecer no Crato. O violão e ele. O mais comovente foi quando aquela grandeza em que se encontrava foi se transformando em alguém que era alguém como ele próprio. Era um de nós. E do meio daquele happening, lentamente, um rosto foi se tornando conhecido. O rosto do velho Abidoral. Aquele mesmo que comerciava miudeza como se fosse a narrativa das necessidades atendidas.
Anos depois deste fato esse alguém me contou. Assim como depois eu vi seus filhos crescerem e aquele que lhe herda o nome se tornar num ícone da música local. Agora compreendo que muito mais intenso do que até pude acompanhar, nesta distância que me põe justaposto ao espaço de ontem. Mas o Abdoral Jamacaru não deve lembrar-se. Isso não se fixa, mas a última vez que nos falamos foi na Rua do Resende aqui no Rio de Janeiro. Uma conversa rápida, destas que conterrâneos, depois de tantos anos afastados, se falam, repetindo chavões e lembrando de velhos cumprimentos.
3 comentários:
A voz do violão acabou me despertando. Eu estava sonhando , e o violão também !
Justa e linda essa lembrança... Crato dos santos boêmios...
Uma leva de violões calados , presente nas luas de outros tempos.
Bela madrugada , poeta !
16 Junho, 2008 01:32
Existem relatos tão comoventes que até nos esquecemos do relator mas nos lembramos integralmente dos fatos. Alguém, aí por volta da 18 horas do antigo tempo dos anos 60, quando o Crato era outro, menos carros, as motocicletas haviam sido esquecidas da indústria de veículos. Alguém vinha da praça da Sé em direção ao Pimenta. A cidade escurece mais cedo, a chapada do Araripe não é em vão, abriga o sol alguns minutos antes para que ele volte com muito mais força de retorno. No Crato, em menos de meia hora, entre as 17 e as 18 horas, começava um entreato sem gentes nas ruas, todas em suas casas iluminadas. E o referido alguém seguia já próximo da gráfica do jornal Ação, quase chegando ao colégio Santa Teresa. Se estivermos no centro de uma multidão e de repente passarmos para outro ambiente com apenas alguma centena, temos a sensação de vazio. Não é bem vazio, mas o contraste assim nos faz. Como a pessoa que seguia em frente ao colégio Santa Teresa sentia-se. A cidade estava vazia. Era uma cidade com o sentimento da solidão. A solidão do ângelus. Ou próximo dele. Naquele momento fazia um silêncio só compreendido pelos que estiveram no intenso dos afazeres diversos de uma cidade no momento final de sua fervura. Alguém seguia em direção ao Pimenta, numa solidão de ouças, de vistas esmaecidas no lusco-fusco, a sensação de um frio noturno, as pisadas na calçada como voz única. Alguém se sentia muito só. Todas as portas do comércio haviam fechado, os cinemas terminadas as sessões vesperais, os moradores da periferia já haviam ido, ninguém mais se encontrava no café Crato e a Praça estava como um terreiro no silêncio que antecede, imediatamente, a chegada do sanfoneiro e dos enlouquecidos forrozeiros. E foi do centro daquela solidão que os acordes de um violão encheram a rua com o mesmo volume de sentimentos que, na alma daquele relator, transbordou em emoção. Como um feitiço os passos seguintes levitaram sobre o indizível piso da calçada. Era uma rua, mas ao mesmo que era, também não era, pois não era pano de fundo e nem presença. Era, também, indizível. Apenas a melodia, não mais toques ou acordes, mas um todo que substituía o ambiente urbano por algo que era a própria narrativa de que a sobrevivência se encontra num estágio abaixo daquilo que alguém ouvia. E no movimento que a música o levava esta pessoa foi se aproximando de um homem, de pijamas, ele e o entardecer no Crato. O violão e ele. O mais comovente foi quando aquela grandeza em que se encontrava foi se transformando em alguém que era alguém como ele próprio. Era um de nós. E do meio daquele happening, lentamente, um rosto foi se tornando conhecido. O rosto do velho Abidoral. Aquele mesmo que comerciava miudeza como se fosse a narrativa das necessidades atendidas. Anos depois deste fato esse alguém me contou. Assim como depois eu vi seus filhos crescerem e aquele que lhe herda o nome se tornar num ícone da música local. Agora compreendo que muito mais intenso do que até pude acompanhar, nesta distância que me põe justaposto ao espaço de ontem. Mas o Abdoral Jamacaru não deve lembrar-se. Isso não se fixa, mas a última vez que nos falamos foi na Rua do Resende aqui no Rio de Janeiro. Uma conversa rápida, destas que conterrâneos, depois de tantos anos afastados, se falam, repetindo chavões e lembrando de velhos cumprimentos.
postado por José do Vale Pinheiro Feitosa às 01:07 em 16/06/2008
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Zé, agradecido pela lembrança paterna, pela a homenagem que você e Socorro prestaram! Wm nome da família Jamacaru
Abraços
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