O matuto estava arreando o burro , madrugadinha. Acabara de botar cangalha e apertara as cilhas no último buraco do loro, quando a mulher saiu na porta, vassourão em punho, e lembrou:
--- Tonho, não esqueça de trazer minha encomenda !
O homem montou no animal, enquanto pensativo curtia a aurora sanguínea que se espraiava no horizonte, como uma sangria desatada. Preparou, calculadamente, o cigarro de palha entre os dedos e o levou à boca desdentada, com o lume aceso. Tonho esporou o burro e tentou remontar, de cabeça, o pedido que a esposa lhe fizera na noite anterior. Ia providenciar a feira em Matozinho, comprar as bugigangas da semana e sabia que uns quatorze quilômetros o afastavam da vila. A mulher lhe pedira para passar na loja de confecções de Seu Lauro Maia, defronte à praça da Matriz e pegar uma agulha de crochê. Nem sequer precisa explicar, Tonho, a moça já sabe o que é, a marca, o tamanho, tudo – lhe adiantara Judite, antes de caírem na mama , na noite anterior. Ele imaginou que se tratava de uma agulha, uma vez que a companheira era muito habilidosa com as mãos e ganhava um dinheirinho bom, desde que se metera no ramo de artesanato, arte que herdara da mãe : a velha Gerônima do Baixio de Dentro. Nos últimos meses, Tonho se dedicava com afinco na construção de um puxadinho na casa, encompridando a cozinha e levantando uma despensa para acondicionar os cacarecos. Precisara aprender artes de pedreiro quando trabalho uma época em São Paulo, ainda solteiro.
Quando chegou em Matozinho,já dia claro, fez a via sacra de sempre. Comprou os picualhos na feira e, depois, dirigiu-se à Rua do Caneco Amassado, onde encheu a cara com umas mulheres-damas sentadas no joelho. Já de tardizinha, meio melado ou melado e meio, quando resolveu tomar o caminho de volta para o Baixio, lembrou da encomenda de Judite. Chegar em casa daquele jeito, puxando fogo , com o cheiro forte de extrato barato no cangote e ainda sem levar o solicitado, era encrenca certa. Resolveu, então passar na Armarinho de Seu Lauro. Em lá chegando, achou-o um pouco diferente, com luzes coloridas na frente. De qualquer maneira, de nada desconfiou. Primeiro porque há anos não entrava na loja e, depois, a cachaça no toitiço não permitia exercer atividades de Sherlock Holmes: Elementar, Caro Watson ! Entrou porta adentro e lá, encontrou uns clientes esquisitos, caladões, fazendo seus pedidos quase sussurrando. Dirigiu-se para uma balconista novinha e solícita e mandou:
--- Ei, vim pegar a encomenda de Judite !
A moça , estranhamente, não lembrava qualquer pedido feito por uma senhora com esse nome. Dirigiu-se às colegas, mas nenhuma parecia saber do estranho embrulho da esposa. A balconista, educadamente, lhe explicou o impasse e o acalmou:
--- Ninguém lembra da encomenda da D. Judite, mas vamos ver se a gente tenta descobrir...Para que servia mesmo , o senhor lembra, seu, seu...
--- Tonho ! Bem, ela pegava a bichinha, deitava e passa o dia todo enfiando e desenfiando...
--- Hummmm ! Acho que já sei do que se trata , seu Tonho! Me diga uma coisa, era grande, média ou pequena ?
--- Acho que é grande que ela usa e com a ponta meio torta, como um anzol...
---- Certo, certo... Bem grande, não vai ter problema, agora torta... e não tem perigo de enganchar, não ? Me diga uma coisa, Seu Tonho e o Senhor, não quer levar nada? O que fica fazendo enquanto D. Judite está enfiando, desenfiando ?
--- Ah, minha senhora, nem se preocupe, eu tou lá no puxado, acabando a minha mão... É um duro danado... De tardizinha tou de perna bamba...
--- Olhe , seu Tonho, admiro o vigor de vocês, mas não é muito bom exagerar não. Vão devagar com o andor... Vocês ficar tisgos... Vocês nunca trabalham junto não, seu Tonho, se mal pergunto ?
--- Não, ela só gosta de trabalhar sozinha ou com Isaura Pandora, uma amiga dela. E ainda apuram um dinheiro danado... trabalham também sobre encomenda, viu? E eu só gosto de plantar com Isacc que mora lá perto de nós.
--- Bem, seu Tonho, vou pegar a encomenda de D. Judite, tenho certeza que ela vai adorar.
A mocinha volta com um pacote imenso e, quando tira o papel para mostrar a Tonho, ele quase cai de costas.
--- Minha senhora, pelo amor de Deus, que diabo de agulha de crochê é essa? Isso é para costurar empanada de circo? Lona de Scania truncada? Parece uma rola, meu senhor! Chame seu Lauro que quero falar com ele!
--- Seu Tonho, o Armarinho de Seu Lauro é do outro lado da praça, se mudou já faz uns seis meses. Isso aqui, é um pênis mesmo pois agora aqui funciona um Sex Shop.
Tonho saiu cambaleando: mais pela visão inesperada que pelos eflúvios etílicos. Meu Deus, o que ainda falta comerciar neste mundão sem cancela? Pegou o rumo de casa. No meio da estrada, parou para uma tirar água do joelho. Quando terminou, deu as três balançadinhas de praxe e, antes de enfiar a bicha de volta, de braguilha adentro, contemplou-a murcha e contrita pelo frio de julho e sem disfarçar o complexo de inferioridade, lascou:
--- Agulha de crochê... Entra prá casa , alfinete véio dos seiscentos...
J. Flávio Vieira
2 comentários:
uma delícia de texto.
Abraço ao Lupin pela leitura.
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