J. Flávio Vieira

---
Moça, você não quer que eu pinte seu retrato ? São só dez reais e vai ficar
muito bonito !
Por
baixo da cartolina branca, trazia , então, vários modelos já pintados anteriormente e que
usava como publicidade. Apresentou-os pausadamente à cliente. A mocinha, de
início, resistiu à investida, mas o menino carregava muitas artimanhas e
técnicas de sedução.
--
Dez reais não é nada! A senhora é tão
bonita que eu devia era fazer de graça ! Juro que pintaria, se não estivesse precisando pagar uma continha
na barraca ali de seu Anfrízio!
De
alguma maneira, o garoto sabia que a
beleza da paisagem, àquela hora,
imantava todos de um sentimento
de permanência, de eternidade. Como se o crayon tivesse a capacidade de tornar
sólido, o etéreo daqueles instantes, fossilizar a efemeridade daquele momento
mágico. Talvez, por tudo isso, a mocinha tenha acedido.
---
Tá certo ! Mas quero sair linda, viu ?
O
pintor sentou-se no chão, diante da moça
refestelada no banco e, rápido, começou a esboçar os contornos do rosto, tendo
no segundo plano: algumas nuvens e um projeto de lua cheia. Usava os dedos e o dorso da mão para espalhar,
aqui e ali, a tinta e uma borracha para
eventuais correções. Conhecia os mistérios da profissão e percebia que toda
mulher, nesse mundo, se acha mais bela do que aparenta. Entendia, pois, na sua
psicologia pictórica, que a interatividade com a modelo é, sempre, essencial no
resultado final.
---
Moça, seu rostinho é meio redondo, você não prefere que eu alongue um pouco ? Acho que fica mais bonito!
---
Alongue, meu filho, tenho um complexo danado dessa cara de lua cheia...
O
pintor , freneticamente, como um Pollock tupiniquim, esparramava a tinta na
cartolina enquanto , meticulosamente, ia indicando possíveis correções que podiam
melhorar a arte final.
---
Essa cicatrizinha no queixo, não é bom tirar ?
---
Tire, isso foi de um acidente que quero esquecer!
---
Se eu aumentar um pouco o busto, você vai ficar mais sensual !
---
Pois aumente !
---
Seu narizinho é charmoso, mas é um pouco chato. Posso arrebitar ?
---
Arrebite, vá lá ! Você presta atenção em tudo, né ?
---
Seu cabelo tá curtinho, acho que ficava mais legal se a gente botasse um pouco
mais de volume, cobriria mais suas
orelhas que são um pouco cabanas...
---
Pois avolume, eu quero é ficar melhor !
Já que não posso fazer plástica, ao
menos no retrato é possível, né ?
Em
poucos minutos , com movimentos cada vez mais rápidos e sincronizados, o menino
finalizou a obra. Assinou num cantinho : “Juvenal”
e, logo abaixo, datou: “2013”. A
menina observou, detalhadamente, o
quadro e gostou do que viu. Ali estava justamente como gostaria de ser, sem um
defeito sequer: linda, deslumbrante, poderosa, com um sorriso pendendo nos
lábios. Pagou, elogiou o trabalho do artista e saiu para casa levando sua
relíquia debaixo do braço. No outro dia,
mandou botar no quadro , com uma moldura antiga e dourada e um passe-partout bege.
Afixou na sala de jantar, logo
acima do divã azul.
Os
dias se passaram e a menina começou a encafifar. O retrato lá estava lindo e
deslumbrante, todo visitante admirava-se da beleza da obra, mas ,invariavelmente,
seguia-se a pergunta fatídica;
---
Quem é ? Sua irmã? Uma prima ? Sua tia ?
De
tanto responder e explicar, cansou. Resolveu tirar o quadro da parede. Chegou à
conclusão que nós somos nós , não só por nossas qualidades, mas também por
nossos defeitos. Sem a alça, a mala poderia ser até mais bonita e simétrica, mas seria apenas uma caixa. As
pretensas deformações que nos tornam mais feios são , justamente, aquelas que
nos dão a identidade , que terminam nos fazendo diferentes e únicos.
Crato, 24/10/13
Nenhum comentário:
Postar um comentário