TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

quarta-feira, 29 de maio de 2019

A MÃE, O JUAZEIRO E O PADRE CÍCERO - Dr. Demóstenes Ribeiro (*)


O menino despertou com o canto do galo, e a mãe já preparava a viagem ao Juazeiro. Ela dormiu pouco. O trem ainda apitava ao longe, mas estavam todos ansiosos. Haveria a compra das passagens e era grande o burburinho do povo.
Eles logo tomariam assento. Aquela, quase aventura, era uma viagem especial. A irmã querida, frágil e magrinha, quase morreu de sarampo, e a família iria demonstrar ao Padre Cícero toda a sua gratidão. E próximo à estação, pela janela do trem, vendo a Igreja dos Franciscanos, logo chegaram ao Juazeiro.
O pai, a mãe e as crianças desceram pela rua São Pedro, vaguearam pela São José, andaram na Santa Luzia, na Conceição, no Mercado, talvez na José Marrocos e na Floro Bartolomeu. E o pai conduzindo a todos, certamente deslumbrado com “A Aliança de Ouro”, “As Casas Pernambucanas”, o BNB e o Banco do Brasil: mil sonhos e temores no seu coração guerreiro.
E em meio aos romeiros, na capela do Socorro, no túmulo do Padre Cícero, eles pagaram a promessa. Muitas vezes depois, agora sozinho, no mesmo trem ou de ônibus, o menino voltaria. Compraria gibis e enfeites de bicicleta; na praça principal tomaria sorvete de abacate ou pegaria uma Kombi para o Crato, onde nesse tempo estudava.
E as promessas continuaram com a mãe pedindo a aprovação dele no vestibular e a formatura em Medicina. O milagre se repetiu e todos voltaram, subiram o horto e agradeceram ao “meu Padim” pelo ingresso improvável daquele menino velho na universidade.
Juazeiro do Norte, lugar abençoado, onde meu irmão é feliz. Terra da fé e milagre do Padre Cícero. No teu povo humilde e bom, e não nos ladrões do dinheiro público, existe a força divina a construir a tua história.
E dias atrás, ao ver na televisão tantos “padres cíceros” na bateria de uma escola de samba no carnaval do Rio de Janeiro, ele se lembrou do Cariri e da sua gente, chorou em silêncio e novamente agradeceu ao santo da mãe e da irmã, da infância e da família, pela proteção presente nessa caminhada.
Outro dia em Fortaleza, dia treze, ao passar em frente à Igreja de Fátima, dentro de um automóvel, ele, como um menino antigo, também se juntou às vozes que cantavam e murmurou “com minha mãe estarei na santa glória um dia...” E lembrou do pai, de terno branco e gravata, - velhos tempos - para a missa do domingo na cidadezinha.
Então, fez uma prece e agradeceu muito à mãe. Pois ela, tão devota do Padre Cícero, ainda muito pequeno lhe ensinou a rezar e com imensa sabedoria lhe transmitiu toda a fé. Porque somente um milagre, acreditem ou façam pouco, era a sua vida até aqui.

(*) Médico-Cardiologista, natural de Missão Velha, residente em Fortaleza-CE.

terça-feira, 28 de maio de 2019

terça-feira, 21 de maio de 2019

Os Escolhos e o Brilho das Pepitas











                                              
Os Escolhos e o Brilho das Pepitas

J. Flávio Vieira


                                               Se há uma regra imutável na propalada “Cidade da Cultura” é a incrível e reiterada  falta de espaço  que ela destina aos seus artistas mais importantes. São todos tratados como párias pelas sucessivas administrações públicas nos últimos quarenta anos. Sucessivos Secretários de Cultura , durante tantos e tantos anos, com raríssimas exceções, mantiveram-se como simples marionetes, em pastas sem recursos específicos, sem direito de escolher seus assessores diretos, indicados por critério meramente político , a mais das vezes sem quaisquer mínimos atributos técnicos. As poucas verbas , arrancadas a fórceps, empregaram-se em eventos esporádicos e pouco expressivos ou precisaram ser endereçadas à parte mais frágil do caldo: a Cultura de Tradição. Há quase meio século toda uma horda de artistas: músicos, artistas plásticos, de artes cênicas, cineastas, literatos viram-se órfãos e enjeitados, sem o mínimo incentivo para que continuassem alimentando o mito criado, ao longo dos anos, que terminou por determinar a vocação da Cidade de Bárbara e Tristão, como inerentemente ligada à Cultura.
                                   Não foi muito diferente com o amparo mínimo que se esperava do Estado do Ceará. Mesmo com a criação dos Editais, com recursos bastante reduzidos, embora 50% destes devessem ser encaminhados para o interior, os artistas viram-se assoberbados com entraves burocráticos de largo escalão, difíceis de serem transpostos, pela própria distância que nos afasta da capital, parecendo sempre que a má vontade fazia-se estratégica e calculada com fito de desencorajar os artistas interioranos e carrear os recursos , novamente, para Fortaleza. O certo é que nossos artistas sobrevivem a pão e água: nossas rádios não executam suas músicas; não existem espaços públicos viáveis para expor os trabalhos dos pintores, escultores e fotógrafos; não há teatros, palcos e sons disponíveis para  peças, saraus e shows; as edições de livros precisam ser custeadas inteiramente pelos escritores. Dois cinemas prometidos para a cidade empererecaram , murcharam e, tudo indica, não sairão nunca dos alicerces e das cercas de Madeirit.
                                   Para se ter uma ideia do tamanho do descaso, recentemente viu-se publicada, com estardalhaço e stand no Shopping,  a programação de shows da Expocrato. Como sempre, o repertório é o mesmo do mesmo, não ultrapassa as fronteiras do Forró Breganejo. Salvam-se algumas raríssimas exceções, entre elas , as locais com os grandes : Fidelis, Fábio Carneirinho e Rafael Belo Xote. A maior Festa do Sul Cearense, promovida pelo estado e município, mais uma vez, exclui nomes outros que, simplesmente, perfazem o que melhor se tem feito no Ceará, nas últimas décadas: Abidoral Jamacaru, João do Crato, Luiz Carlos Salatiel, Paulinho Chagas, Cleivan Paiva, Luciano Breyner, Amélia Coelho, Pachelly Jamacaru, Ibbertson Nobre, Dihelson Mendonça, Dudé Casado, isso para citar apenas alguns. Mais uma vez, estão alijados da festa, feito cães rabugentos. Produtores locais tentaram até, de última hora, enxertar um show que envolvesse, num só dia e palco, todos esses músicos, com cachês simbólicos, mas a sensibilidade por parte do município e do estado foi mínima. Que peguem a cuia e vão mendigar pelas esquinas da vida!
                                   Sempre acreditei que, com toda a grade de shows terceirizada ( Essas licitações serão sempre tão lícitas como deveriam ?  ), os vencedores da licitação escolherão, claro, artistas da efêmera arte midiática que lhes traga o lucro almejado e certo. Não lhes cabe fazer política cultural, esta sim, deveria ser uma precípua de prefeitos e governadores. Poderíamos, sim, no Projeto da Reforma da Expocrato ter pensado numa Concha Acústica onde os shows poderiam acontecer mais cedo com os artistas caririenses, com exposição de fotografias e telas e a Feirinha Cariri Criativo ao derredor. Mas nem isso, perversamente, é projetado. Acreditam, certamente, que esses shows poderão prejudicar, de alguma maneira, os do espaço terceirizado e ( loucura absoluta! ) diminuir a arrecadação. Pode parecer até uma teoria conspiratória, mas perfeitamente cabível quando, em anos anteriores, a polícia obrigava as barracas com som alternativo a desligá-los, no momento em que começava os shows tidos como principais, a mando da organização do evento. Que todos ouvissem música ruim ou fossem para casa dormir !
                                   Sei, claramente, que nada mudará sem pressão política. A maior parte da população pode parecer satisfeita e realizada com a Expocrato. Mas percebo, também, que uma grande fatia, na qual me incluo, encontra-se expulsa da maior festa caririense, que nada tem de multicultural e inclusiva. Esperava-se mais de governantes que deveriam usar a Cultura como instrumento de elevação e aperfeiçoamento do seu povo. Resta-nos a certeza de que daqui a alguns anos mais, todos esses hoje poderosos políticos e governantes terão desaparecido totalmente: viverão apenas em nomes de ruas e de instituições frias e insalubres. O que restará, na bateia do tempo, serão os diamantes dos nossos artistas mais significativos, esses mesmos que são torturados, sacrificados e desprezados hoje, diuturnamente.  Talvez a razão de tudo seja justamente essa, uma questão típica de garimpagem: os escolhos não conseguem entender o brilho das pepitas.

Crato, 17/05/19