TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

terça-feira, 21 de agosto de 2007

ÍCARO



Olhos fitos na avenida, tudo parecia inimaginavelmente diminuto. Dali de cima, as coisas se desencadeavam em slow-motion, como se à distância a vida não tivesse pressa. Os homens e os veículos se deslocavam lentamente, como se adivinhassem premonitoriamente que a correria é um anzol lançado pelo abismo. Soava, em meio a tudo ,um silêncio grávido e perturbador. Seria essa a idêntica visão que teria desse mundo, quando já não fizesse parte dele? Desfeito o zoom , tudo parecia tão perfeito! As ruas traçavam paralelas e perpendiculares quase geométricas; os carros transitavam com excessivo cuidado e as pessoas marchavam com passos simétricos e aparentemente calculados. Até o mais céptico dos homens , àquela distância, terminaria por concluir que deveria haver um maestro, de batuta erguida, dirigindo, ao longe, aquele espetáculo.

O tabuleiro de xadrez , estendido lá em baixo, com suas casas traçadas e divididas pelos fios elétricos, pareciam aguardar a mão gigantesca pronta a marcar a próxima jogada. Súbito, a aguda simetria da paisagem lhe feriu a alma, como se ,de repente, fizesse um contraponto com seus caóticos conflitos interiores. Aos cinqüenta anos, caminho estreito à frente, os dias todos exatamente iguais , como se clonados por um anjo mau; um casamento que se findara por decurso de prazo mas que teimava em apodrecer no meio do povo; um emprego num Banco onde era ameaçado diuturnamente : "-- Sabe como é seu Ermano, o mercado anda muito exigente, essas máquinas todas fazem o serviço do senhor, com a vantagem de não reclamar e nem Ter cara de ressaca...ou o Senhor produz ou vai plantar batatas! ".

A solução para todos os seus problemas estava bem ali, diante dos seus olhos, alguns poucos segundos e..... Tumm! Resumiria-se tudo na perplexidade curiosa dos transeuntes, nas lágrimas de crocodilo da família, na fingida cara de tristeza do chefe e dos colegas e na tranquilizadora franja do esquecimento. Ali , porém , estava a contemplar a paisagem e o mundo daquela altura parecia tão perfeito, tão harmonioso, que por um momento se afastaram todas as suas amarguras e frustrações , como se a exatíssima vastidão do universo sorvesse suas mesquinhas pequenezes. Fechou um pouco os olhos para recobrar as forças e caminhou em direção ao abismo. Estancou , novamente, quando, como numa miragem, foi despertado: viu surgir no edifício ao lado, num salão de festas de cobertura, um palhaço, puxando a roda com várias crianças e entoando o "Atirei o Pau no Gato".

Como numa projeção de slides, retornou ao aniversário dos seus cinco anos, quando a vida aparecia para ele igualzinho à Casa de João e Maria : paredes de bolo, telhas de chocolate, ladrilhos de bombons. Aquela certamente era a trilha sonora perfeita , para o seu vôo de Ícaro: suas frágeis asas tostadas apelo sol da realidade .

Observou, porém, antes da decolagem, mais detidamente o palhaço, com sua máscara, seu nariz de framboesa e sua maquiagem carregada. Então, foi como se baixasse o santo. Somos todos tantos dentro de nós mesmos, personagens sem conta neste palco da vida..., pensou, se um não vem desempenhando bem o seu papel, elimina-se este personagem, ao invés de incinerar toda a peça e destruir o teatro. Deu meia volta, desceu as escadas. Em casa mandou a mulher à merda, no trabalho mandou o chefe à PQP e só parou quando teve a certeza absoluta que havia suicidado completamente o Ermano. A partir daí, renasceu em meio aos seus eus tantas vezes confusos , loucos , contraditórios, mas redivivos.


J. Flávio Vieira

5 comentários:

Dihelson Mendonça disse...

Olá, Zé...

Creio que já posso reconhecer o seu estilo peculiar de escrever até debaixo d´água. Na verdade, o uso de descrições minuciosas e por vezes visuais de certas cenas é impressionante.

E conhecendo o seu lado bem humorado como eu conheço, ao ler freneticamente também as suas POTOCAS, quando elas são postadas nos Blogs, fico aqui a rir-me à toa, quando um tema aparentemente simples foi nesse texto transformado em algo Sui generis, que fico a pensar como vc descreveria não o vôo do Ícaro, mas pelo seu lado cômico, como seria por vc relatado o vôo que um cidadão do Crato queria fazer de cima da torre da Teleceará anos atrás, quando uma mulher surgiu e gritou:

"Sai daí, Bastião, que eu te botei foi chifre, e não asas! "

Fico a imaginar na sua maneira peculiar de escrita como seria:

Pode nos brindar com mais um conto?

"Não passava das 11 horas da manhã, quando Bastião já havia entabocado a sexta lapada de cana-do-brejo. "Arri-égua", suspira no pé do balcão, vira-se para a janela e freneticamente, como um tiro de canhão, atira um jato de cuspe que se espalha como uma jaca pela calçada quente. Já meio tonto, sai do boteco com a cara pro mundo, sem saber o que fazer da vida. Rumores ecoavam de que sua mulher estava a lhe botar uma peruca de touro.

Bastião cambaleando foi..."

... a ser continuado pelo nosso tragicômico Guru...

Um grande abraço, amigo Zé Flávio!

Lupeu Lacerda disse...

você escreve bem pra caralho meu irmão!
muito bom te ler.

jflavio disse...

Caros Amigos,

Obrigado ao Lupeu e ao Dihelson pelos comentários.Acho que não existe melhor elogio que este para qualquer um que vive remexendo em artes & afins : conheço seu texto até debaixo dá água! A gente fica todo envaidecido acreditando que tem ao menos uma marca. O Lupeu não conheço pessoalmente mas lia os seus textos já no jornal do Cariri e sempre me pareceram muito inteligentes e com uma linguagem atual e bem humorada. Posso identificar tb os textos do Lupeu em meio a uma centena de outros. O Dihelson escreve bem , embora seu maior instrumento seja o piano e não a pena. Interessantes que todos tenhamos nos encontrado nesta viagem.
Abraços,
jflávio

LUIZ CARLOS SALATIEL disse...

Esse conto Ícaro me lembra sempre o Normando. É a cara dele e foi o que ele fez em vida.

Dihelson Mendonça disse...

A duras penas, o piano é minha pena, o que é uma pena! Mas quem se importa, quem tem pena ? que possamos pautar essa pena para a posteridade.

rs rs rs

Zé, vc é uma figuraça!
Muito obrigado pelo seu tremendo elogio. Vindo de um escritor "como você" ( no bom sentido, rs ), eu só posso me curvar e agradecer, pois de ti, sou mero aprendiz.

Um grande abraço,

Dihelson Mendonça