Obrigado,
Senhor! - Demóstenes Ribeiro
Eu ainda não havia nascido quando meu pai morreu afogado, salvando
um italiano. E nunca vi a minha mãe adormecida, fosse eu criança ou
adolescência afora. Ao me deitar, ela continuava na máquina de
costura; raiava o dia e já estava a trabalhar.
Herdei, assim, uma tendência incontrolável de só fazer o bem.
Mas, no serviço militar, surpreendeu-me a habilidade em manejar
armas. Tiro certeiro, jamais errei um alvo e com os prêmios que eu
ganhei, comprei uma pistola com silenciador.
Ao deixar o quartel e voltar para casa, fiquei indignado, pois a vida
da minha mãe mudara para pior. Havia o Borges, um grandalhão
barrigudo e irresponsável, exigindo dinheiro e a lhe maltratar.
Percebi o desespero da coitada em não saber como resolver essa
questão.
Aos poucos, descobri os hábitos do vagabundo e onde ele morava.
Certa noite, quando ele desceu do ônibus e a rua estava deserta,
deixei-o se afastar um pouco e acionei a pistola. Um tiro na cabeça
e mais um crime misterioso, apesar dos muitos inimigos que o filho da
puta deixara. Um dia, mamãe olhou nos meus olhos e disse,
serenamente, Deus lhe pague!
Daí em diante, embora bem de vida, uma dor esquisita na barriga
atrapalhava a paz que eu deveria sentir - um sofrimento que se
tornava insuportável. Levaram-me à Emergência e a visão da morte
se esboçava. Um Professor, cercado de estudantes, me deu uma atenção
que eu não esperava. Era úlcera perfurada. Ele me operou e salvou a
minha vida. Não tinha como lhe ser grato, exceto o tiro certeiro, o
melhor de mim, se algum dia ele precisasse.
Muito tempo depois, as amizades no Exército levaram-me para uma
multinacional responsável pela segurança de autoridades. Naquele
dia, FHC viria inaugurar o novo hospital e eu estava entre os
escalados. Em meio a tanta gente, vislumbrei o Professor. Não era
mais o homem vibrante que me curara. Acabrunhado, envelhecido,
triste. Não sou doutor, mas ele parecia sofrer de uma doença da
alma. Por fim, nos aproximamos.
- Mestre, lembra de mim? O Senhor salvou minha vida, sou Plácido,
tiro certeiro, da úlcera perfurada!
- Plácido, como vai, preciso de você, amanhã venha fazer uma
revisão.
No dia seguinte, a sós e com as portas fechadas, ele me falou da
sua desgraça. O casamento desandara. Foram-se as alianças, o
respeito e a amizade. Era vítima de chacotas e não mais conseguia
trabalhar. A mulher perdera totalmente a discrição. Às vezes,
chegava embriagada. Diziam ter vários amantes, nem o pior dos
inimigos faria tanta maldade. Como encarar os pacientes, os
estudantes, os colegas, a vida enfim? Você me prometeu, ele repetiu
muitas vezes, e sei que não me fará ingratidão.
Descobri toda a rotina da putana. Ela saía do estacionamento de
uma igreja e ia rezar num motel. Sem despertar suspeita, como a
esperar alguém, eu fiquei por perto. Parou um carro, a outra fez
sinal, ela entrou e beijaram-se na boca. A vaca, ainda por cima, era
sapato. Anunciei o assalto. Deram-me bolsas, telefones, relógios...
Em troca, um tiro em cada cabeça - pistola com silenciador.
Muito rápido, rua quase deserta, fugi no meu carro. Adiante,
saquei a placa fria e joguei com as coisas num matagal. As luvas, eu
queimei quando cheguei em casa. Após um banho, chamei um rádio-táxi,
fui pro aeroporto e embarquei pra Salvador. Um árabe importante
chegaria e eu faria parte da segurança.
No hotel, após uma oração, tomava o café da manhã e pensava
em minha mãe, quando o celular tocou. A ligação breve, sem muita
nitidez, veio de um telefone público. Mas era uma voz conhecida, de novo firme e alegre, dizendo tão somente: obrigado, Senhor !