TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

sexta-feira, 2 de novembro de 2007

Criança pode trabalhar?



As sociedades agrárias possuíam um grande repertório de narrativas e incorporavam conhecimento pela repetição delas. Eram sociedades com quase nenhum registro escrito, em que a oralidade era a principal forma de transmissão do saber. Existiam provérbios para cada situação da vida. Meu avô costumava repetir um, que hoje seria politicamente incorreto, caso de polícia:
- Trabalho de menino é pouco, mas quem desperdiça é louco.

Meu avô possuía nove filhos, seis homens e três mulheres, e morava numa fazenda no interior do Ceará. Era um agricultor de médio porte: plantava arroz, feijão, milho e algodão, e também criava gado bovino. Nos anos de bom inverno, chegava a lucrar oitocentas sacas de arroz, cada uma com sessenta quilos. Quando a tecnologia rural limitava-se ao braço humano e a uma enxada, imaginem quanto trabalho era preciso para alcançar tamanho lucro.

Quando os filhos homens completavam três anos, meu avô os levava para o roçado. As crianças carregavam uma enxada pequenininha, quase um brinquedo, e aprendiam a distinguir um pé de arroz de um pé de capim. Nos anos vinte e trinta do século passado, mesmo para os filhos de um pequeno proprietário de terras não havia muitas opções de escola. Os filhos de José Leandro aprenderam a ler e a escrever, e três deles mantiveram-se no ofício do pai. Os outros três debandaram para o comércio. As filhas, iguais à mãe, mantiveram-se na profissão do lar.

Carpintaria, marcenaria, ourivesaria, pintura, costura, bordado e uma centena de outras profissões se aprendiam na escola do pai e da mãe. Desde criança os meninos e meninas acompanhavam os genitores nos seus ofícios, até que chegava o tempo em que tinham de fazer a escolha entre permanecer naquilo que aprenderam ou buscar uma nova profissão. Quando os filhos sonhavam com um outro ofício, os pais os entregavam a um mestre, que ensinava o que eles desejavam aprender. Era assim. Foi assim durante muitos séculos. Por milênios, para ser mais exato.

O que se partiu nessa cadeia de ensino? Primeiro, a exploração do trabalho infantil com o fim exclusivo do lucro. A criança deixou de ser um aprendiz e transformou-se num trabalhador explorado. Isso também já existia, os relatos orais e os livros clássicos estão cheios de histórias de meninos escravizados. Segundo, achou-se que a criança até a idade de dezoito anos deve apenas freqüentar a escola regular. Terceiro, a produção industrial praticamente aboliu a tradição dos mestres artesãos, pondo fim a um ciclo formador de profissionais.

Sobrou para a escola o papel de educar e profissionalizar. Muitas famílias nordestinas já não se acham no dever de ensinar aos filhos o que aprenderam no campo, onde a sobrevivência é difícil e sem perspectiva de mobilidade social. A bolsa escola foi criada para erradicar o trabalho infantil, mas funciona como censura a qualquer forma de labor doméstico. Os pais mandam os filhos para a escola, garantem a bolsa, e nem ligam se eles aprendem alguma coisa útil e prática.

Famílias do Sul fogem ao modelo dos pobres do Nordeste. Nas comunidades rurais e cidades menores ainda se pratica a agricultura e o comércio familiar. Viajando por vinícolas e tecelagens é possível apreciar avós, pais e filhos trabalhando juntos. E ninguém deixa de freqüentar escola nem tem baixo rendimento nos estudos. A educação é um compromisso da família e do Estado. E o trabalho de crianças e jovens, uma aprendizagem, desde que não seja humilhante e explorado como nas casas de farinha e carvoarias nordestinas.




Ronaldo Correia de Brito é médico e escritor. Escreveu Faca e Livro dos Homens. Assina coluna na revista Continente.

Um comentário:

socorro moreira disse...

Criança pode aprender a trabalhar, assim que aprende a andar, falar...
O caminho da perfeição é inatingível...Não podemos perder tempo.Na infância aprendemos tudo, tão rapidamente! Mas,criança é discípulo...é aprendiz... é anjo, querendo a promoção de arcanjo!
Quanto aa exploração do menor,nem sei dizer sobre isso...arrepia-me!