Entre nós e a grandeza inerente ou adquirida existe um vão? Material ou virtual? Um espaço que nos faz em duas partes: um corpo e um espírito?
Os primeiros a afirmar são os espiritualistas, na parte humana que eternamente estará em Deus e com Ele. Os que, paradoxalmente com Deus, buscam a unidade de todas as coisas, vêm-se como propriamente dual. Deus em sua essência é ação criadora, tudo se precipita em duas ou tantas mais partes. Seres humanos se compartimentando em fragmentos. Depois os materialistas encontram a unidade no seu próprio corpo e, na contradição do arco da história que assetou-lhe a individualidade, fartaram-se de contraposição a tudo o mais em sua volta.
O texto do século XX é testemunho do princípio da incerteza de Werner Heisenberg aplicado ao mundo subatômico, mas transportado para as entranhas do pensamento e da fé. Na medida em que mais busco a unidade, maior a incerteza da multiplicidade. Maior a precisão sobre o conjunto do mundo, maior a incerteza a respeito do indivíduo ou vice e versa. Pode ser e não pode, até que o exame se realize definitivamente, qualquer um será. Quanto mais concentrada a energia do exame, mais incerta será a visão da realidade que se precisa entender.
E neste paradigma da racionalidade atômica, Chico Preto, filho de Dona Maria, irmão de Zé, o maior filósofo do Vale do Batateira, entre um salto e outro sobre as areias lavadas do rio seco, lançou-se à ação pontual e terminou em queda imprecisa. Um final de tarde, aí por volta das 16:30 horas, quando o sol começava a se agasalhar sobre o planalto da chapada do Araripe. Um grupo de meninos em plenas estripulias, daquelas que a gravidade gosta negar e a natureza sólida do chão confirmar.
Empunhar. Levantar o punho em vitória. Cada menino empunharia o outro: algo que ninguém se atreveria repetir. Naquela tarde Chico empunharia a todos. Verdade contradita. Mitonho, magro, ágil e desconhecedor das leis da física. Chico foi ao outro lado da mureta da ponte, preparou-se e saiu em disparada. Sem olhar para baixo, no mesmo lance, saltou a mureta, despencando-se do alto, bem no centro do morrinho de areia juntada para reduzir o impacto. Pular da altura sobre o morrinho já era um desafio, do modo que Chico fez, mais ainda, e todos estavam empunhados. Não Mitonho.
Foi ao outro lado como Chico. Disparou igual, mas ao invés do salto simples sobre a mureta oposta, fez uma pirueta mortal no ar e caiu bem sobre o morrinho. Chico que ainda limpava a areia do corpo, viu, lá de baixo, o inacreditável traçado de Mitonho. Abriu a boca de decepção tão intensamente que a baba escorreu-lhe pelos cantos. A língua acostumada no passado a chupar o dedo, sentiu necessidade da sucção. Se não fosse a corrida dos demais para entender a resposta à Mitonho, teria voltado ao antigo hábito em pleno leito seco do Rio Batateira.
Chico foi ao vão da ponte onde os demais se encontravam à espera de sua resposta. Na concentração filosófica apropriada, não disse coisa sequer e, imediatamente, subiu na mureta oposta ao suposto salto. Todos se concentraram no conteúdo da nova proeza. Mitonho já se sentia ultrapassado. Chico balançou os braços lentamente e gritou: mortal duplo. E partiu.
Todos viram o esforço. Mas nada aconteceu ao corpo de Chico. Permanecia visível no mesmíssimo lugar em que já estava. A meninada olhou para a mureta onde o salto deveria ter ocorrido e novamente retornou a atenção para Chico. Impassível, sobre a mureta de onde deveria ter corrido. Perguntaram ao desafiado de Mitonho que graça era aquela.
Do alto em que estava o palco da Ágora, Chico discursou como Platão aos discípulos:
– "Aqui ficou apenas o barro de Adão. O sopro de Deus, que temos em nós, saiu de ponte à frente e deu três, não apenas dois saltos mortais como prometi e depois caiu bem direitinho sobre a ruma de terra. Minha alma empunhou todos vocês. Agora espero igual desafio".
Foi Chico terminar e Dedé aceitar os termos da contenda. Fez igual e relatou que havia dado quatro saltos mortais, só que de costas. Mas Chico invalidou a encenação. Só haveria certeza se Dedé conseguisse comprovar o ocorrido. Aí, este disse que a Chico, o primeiro a realizá-los, caberia a prima prova.
Chico repetiu o mesmo salto e consultou-lhes sobre o ocorrido. Todos estavam cegos para o relato dele. Chico chamou-lhes à beira da ponte e apontou para o que seria a alma sobre o montinho de areia. Ninguém viu ou sentiu qualquer sopro da presença da mesma. Chico insistiu com fé na figura, ali presente, do ser que havia empunhado a todos. Mas nem um arrepio de pelos denunciava a presença de tais coisas efêmeras. Chico argumentou com a natureza de corpo e alma, mas ninguém contextualizava tal coisa no salto do filósofo. Um dos meninos pediu mais esforço demonstrativo.
Ele subiu na mureta e, apontando o leito seco lá embaixo, apresentou o princípio da incerteza. Quanto mais se esforçassem, mais longe a alma estaria. Se concentrassem mais o olhar em sua busca, mais ela se diluiria. Se olhassem pelos cantos da visão algo difuso poderia aparecer, mas pensariam nos elementos naturais que já estavam na paisagem.
Pinga disse para Chico que aquele empunhar não tinha validade, pois tinha certeza que Mitonho dera um salto mortal, mas o dele, mesmo triplo, ninguém vira e nem as pegadas estavam no monte de areia. Chico levantou os braços aos céus como se fosse clamar, mas o que fez foi declamar:
– "Do mesmo modo que o meu é incerto para vocês, nesta altura dos acontecimentos, o de Mitonho também o é, pois ambos pertencem ao universo dos relatos e, portanto, têm a mesma natureza. Aconteceu ou não aconteceu o salto de Mitonho? Tudo agora é relato, como o dele, pois mesmo que filmado, pode ser truque de cinema. Fato realizado é interpretação, é relato e, portanto, o salto de Mitonho está sujeito às mesmas dúvidas que existem a respeito do meu".
Foi Chico terminar seu discurso filosófico e Biô dizer:
– "Vou logo prá casa antes que a incerteza leve ela para o Alto do Seminário e me faça letra neste papel".
Os primeiros a afirmar são os espiritualistas, na parte humana que eternamente estará em Deus e com Ele. Os que, paradoxalmente com Deus, buscam a unidade de todas as coisas, vêm-se como propriamente dual. Deus em sua essência é ação criadora, tudo se precipita em duas ou tantas mais partes. Seres humanos se compartimentando em fragmentos. Depois os materialistas encontram a unidade no seu próprio corpo e, na contradição do arco da história que assetou-lhe a individualidade, fartaram-se de contraposição a tudo o mais em sua volta.
O texto do século XX é testemunho do princípio da incerteza de Werner Heisenberg aplicado ao mundo subatômico, mas transportado para as entranhas do pensamento e da fé. Na medida em que mais busco a unidade, maior a incerteza da multiplicidade. Maior a precisão sobre o conjunto do mundo, maior a incerteza a respeito do indivíduo ou vice e versa. Pode ser e não pode, até que o exame se realize definitivamente, qualquer um será. Quanto mais concentrada a energia do exame, mais incerta será a visão da realidade que se precisa entender.
E neste paradigma da racionalidade atômica, Chico Preto, filho de Dona Maria, irmão de Zé, o maior filósofo do Vale do Batateira, entre um salto e outro sobre as areias lavadas do rio seco, lançou-se à ação pontual e terminou em queda imprecisa. Um final de tarde, aí por volta das 16:30 horas, quando o sol começava a se agasalhar sobre o planalto da chapada do Araripe. Um grupo de meninos em plenas estripulias, daquelas que a gravidade gosta negar e a natureza sólida do chão confirmar.
Empunhar. Levantar o punho em vitória. Cada menino empunharia o outro: algo que ninguém se atreveria repetir. Naquela tarde Chico empunharia a todos. Verdade contradita. Mitonho, magro, ágil e desconhecedor das leis da física. Chico foi ao outro lado da mureta da ponte, preparou-se e saiu em disparada. Sem olhar para baixo, no mesmo lance, saltou a mureta, despencando-se do alto, bem no centro do morrinho de areia juntada para reduzir o impacto. Pular da altura sobre o morrinho já era um desafio, do modo que Chico fez, mais ainda, e todos estavam empunhados. Não Mitonho.
Foi ao outro lado como Chico. Disparou igual, mas ao invés do salto simples sobre a mureta oposta, fez uma pirueta mortal no ar e caiu bem sobre o morrinho. Chico que ainda limpava a areia do corpo, viu, lá de baixo, o inacreditável traçado de Mitonho. Abriu a boca de decepção tão intensamente que a baba escorreu-lhe pelos cantos. A língua acostumada no passado a chupar o dedo, sentiu necessidade da sucção. Se não fosse a corrida dos demais para entender a resposta à Mitonho, teria voltado ao antigo hábito em pleno leito seco do Rio Batateira.
Chico foi ao vão da ponte onde os demais se encontravam à espera de sua resposta. Na concentração filosófica apropriada, não disse coisa sequer e, imediatamente, subiu na mureta oposta ao suposto salto. Todos se concentraram no conteúdo da nova proeza. Mitonho já se sentia ultrapassado. Chico balançou os braços lentamente e gritou: mortal duplo. E partiu.
Todos viram o esforço. Mas nada aconteceu ao corpo de Chico. Permanecia visível no mesmíssimo lugar em que já estava. A meninada olhou para a mureta onde o salto deveria ter ocorrido e novamente retornou a atenção para Chico. Impassível, sobre a mureta de onde deveria ter corrido. Perguntaram ao desafiado de Mitonho que graça era aquela.
Do alto em que estava o palco da Ágora, Chico discursou como Platão aos discípulos:
– "Aqui ficou apenas o barro de Adão. O sopro de Deus, que temos em nós, saiu de ponte à frente e deu três, não apenas dois saltos mortais como prometi e depois caiu bem direitinho sobre a ruma de terra. Minha alma empunhou todos vocês. Agora espero igual desafio".
Foi Chico terminar e Dedé aceitar os termos da contenda. Fez igual e relatou que havia dado quatro saltos mortais, só que de costas. Mas Chico invalidou a encenação. Só haveria certeza se Dedé conseguisse comprovar o ocorrido. Aí, este disse que a Chico, o primeiro a realizá-los, caberia a prima prova.
Chico repetiu o mesmo salto e consultou-lhes sobre o ocorrido. Todos estavam cegos para o relato dele. Chico chamou-lhes à beira da ponte e apontou para o que seria a alma sobre o montinho de areia. Ninguém viu ou sentiu qualquer sopro da presença da mesma. Chico insistiu com fé na figura, ali presente, do ser que havia empunhado a todos. Mas nem um arrepio de pelos denunciava a presença de tais coisas efêmeras. Chico argumentou com a natureza de corpo e alma, mas ninguém contextualizava tal coisa no salto do filósofo. Um dos meninos pediu mais esforço demonstrativo.
Ele subiu na mureta e, apontando o leito seco lá embaixo, apresentou o princípio da incerteza. Quanto mais se esforçassem, mais longe a alma estaria. Se concentrassem mais o olhar em sua busca, mais ela se diluiria. Se olhassem pelos cantos da visão algo difuso poderia aparecer, mas pensariam nos elementos naturais que já estavam na paisagem.
Pinga disse para Chico que aquele empunhar não tinha validade, pois tinha certeza que Mitonho dera um salto mortal, mas o dele, mesmo triplo, ninguém vira e nem as pegadas estavam no monte de areia. Chico levantou os braços aos céus como se fosse clamar, mas o que fez foi declamar:
– "Do mesmo modo que o meu é incerto para vocês, nesta altura dos acontecimentos, o de Mitonho também o é, pois ambos pertencem ao universo dos relatos e, portanto, têm a mesma natureza. Aconteceu ou não aconteceu o salto de Mitonho? Tudo agora é relato, como o dele, pois mesmo que filmado, pode ser truque de cinema. Fato realizado é interpretação, é relato e, portanto, o salto de Mitonho está sujeito às mesmas dúvidas que existem a respeito do meu".
Foi Chico terminar seu discurso filosófico e Biô dizer:
– "Vou logo prá casa antes que a incerteza leve ela para o Alto do Seminário e me faça letra neste papel".
Um comentário:
Parece um diálogo entre o mundo virtual e o mundo real.Os dois são incertos, mas equacionáveis.Adoro fórmulas já deduzidas.Esqueço as letras...Os números me reconduzem a qualquer mundo!
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