TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

sexta-feira, 9 de novembro de 2007

SOFIA ESTAR MAMANDO

Com alguns séculos de diferença, nasceu Sofia. O avô numa casa de fazenda do remoto interior brasileiro e a neta na pós-moderna megalópole litorânea. Quando pelo canal do parto pôs a cabeça no ar, o avô de Sofia estava numa era quase alencarina. Com transporte à base animal, os engenhos a vapor e a agricultura com baixa incorporação mecânica. O cinema era uma festa de final de semana, isso quando as notas escolares não redundassem em punição. O rádio funcionava com bateria de automóvel e, quando descarregava, era transportada na caçamba de madeira do leiteiro, que a levava até a cidade para uma chupeta de quase um dia. As histórias de cangaceiros ficavam na esquina e na calçada da frente os pistoleiros encomendados transitavam pelos sertões. A escola pública era um desejo, apenas os colégios católicos atraíam a elite rural até eles. Médico era um ser mágico, calado, de mãos escovadas, prontos para nos passar bebidas amargas e furar nossas carnes com agulhas de aço.


Sofia nasceu ontem, dia 08 de novembro de 2007, por volta de 23:20 horas em ambiência tecnológica e performática. Nem pensar em nascer no próprio domicílio familiar, isso nunca existiu segundo se pensa atualmente. Foi numa maternidade com tantas luzes que uma praça se iguala em iluminação. Quartos assépticos no olhar, todas as traquitanas da pós-modernidade: viva-voz com a enfermagem, televisão, suprimento de gases, botões que regulam a intensidade das lâmpadas, banheiros, armários, frigobar e até um cofre para guardar valores. Isso é o que o plano de saúde cobriu, não é uma pós-modernidade universal para a sociedade. E Sofia nasceu de parto cesariano, como nascem a maioria das crianças de sua era.


O momento do parto é um espetáculo com retaguarda preparada anteriormente. Os pais, alguns meses antes, farão um curso de um dia sobre o momento e o pós-momento do nascimento da filha. Sabem de tudo que ocorrerá em cena e cenário. No dia do parto de Sofia o avanço das eras deu uma escorregada e retornou anos em direção aos seus avós. Pois não é que se reuniu toda a família como antigamente se fazia e postada para guardar a cria, numa algazarra de palavras e nervosismos primitivos. A mãe, a gestante, a nora do avô de Sofia, num jejum de sólidos e líquidos jurava que pararia de falar, pois a mucosa oral estava igual às terras secas do estado natal dos avós nordestinos. Mas que ajuntamento primitivo como aquele ligava para sede o que se tinha era sede de gente e gente se bebe falando. A mãe de Sofia bochechava para se umedecer, mas parar de falar jamais.


Nisso chega o médico pós-moderno, com seus cabelos de séculos antes, examina rapidamente a gestante e avisa, vai para a sala de parto cesariano. Enquanto ele desce para se preparar, a turba familiar retorna ao quarto e as conversas se misturam: a tia Márcia que veio de Belo Horizonte, de avião, só para cuidar da Sofia, deixando o lazer das férias só por ela. Lá estava a Socorro, uma Paraibana de tão profundas raízes que nem a colonização do Estado pode dar notícias. E Socorro dizia: eu fui ensinada em escola pública, sou o que sou por isso, então sou voluntária para ensinar de graça os pobres de hoje para evoluírem sócio-economicamente como igual ocorreu comigo. Estava o Ruy o tio da Sofia, entre perplexo e um espírito de touro bravo no curral. Os primos tios de Sofia: Beto que chegou cavalgando uma moto através dos sulcos urbanos, a Belinha com seu sentimento de artista e Ricardo com seu carinho pelo pai de Sofia. Junte a isso os avós e o pai de Sofia e conte quantos estavam no quarto, até que a gestante foi para o parto e os demais desceram para o espetáculo do nascimento de Sofia.


Um salão amplo, poltronas, mesas com cadeiras, televisão de grandes polegadas e num canto um farto "coffee shop", é assim mesmo na pós-modernidade. Então os assistentes comem, bebem e aumentam o tom das palavras. Passam-se 30 minutos. Atrás da televisão, um paredão de vidros transparentes, são duas paredes anguladas inteiras, cada uma de uns 6 metros e por trás disso tudo um aquário iluminado com berços aquecidos, berços em abundância, enfermeiras em atividades e dezenas de recém-nascidos sob o foco de familiares embevecidos.
Nisto a programação da televisão é interrompido, aliás, passava um programa impróprio para a ocasião: Linha Direta da TV Globo. Pois bem a programação é interrompida, um tchan: um Coração Vermelho, a vinheta do anúncio, bate para os ouvintes. Os familiares correm, como num circo, para o espetáculo televisivo. Os presentes aceleram o coração, os olhos marejam, a vida entra numa esfera acima e na tela surge a imagem de SOFIA. Inteira, com o umbigo recém-cortado, seu tórax respirando os primeiros ares de sua vida extra-uterina, o piscar nervoso da luz primeira sobre suas pupilas. Passa um sentimento imediato de lhe oferecer tudo que o útero a protegia. Uma coragem de enfrentar a imperfeição do mundo, a inquietude de nada estar fazendo de próprio para proteger.


Ato seguinte: entra o pai de Sofia, uma enfermeira com ela aos braços, ele com uma máquina filmadora na mão, todo de branco onde assistira ao parto da filha. A juntada familiar sai da televisão às pressas e corre para os vidros do aquário. Sofia chega, que rosto se apreenderia (?), uns olhos de azeitonas pretas (?), um rosto de quem (?) ou só dela (?), são tantas observações, tantas emoções ebulientes, que a síntese final é: SOFIA.


Nisso tudo tem um farto papel de avós, quando para surpresa do tempo, um bebê filho do seu bebê está bem diante de seus sentimentos. A avó, escolada no filho dos outros, foi pediatra, mãe, tia, parecia uma insegura mãe de primeira vez. Batia no vidro do aquário se Sofia abria a boca como se chorasse um choro rápido. Sofia salivava e a avó queria que alguém fosse lá e enxugasse. Todo mundo falava ao telefone: de Barra Mansa a Fortaleza, de Salvador ao Rio de Janeiro, de Minas Gerais a Brasília uma intrincada rede de notícias sobre Sofia. Impressões, conclusões, afirmações, especulações transitavam até que o segurança da maternidade, passava da meia noite, sugeriu que todos retornassem à noves horas do dia seguinte e todos se foram carregados pelo espetáculo de Sofia.


Às seis horas da manhã o pai de Sofia liga para a mãe, agora avó, e diz: SOFIA ESTAR MAMANDO.

4 comentários:

Domingos Barroso disse...

Sabedoria, Sofia, sabedoria.
Eta, prosa poética fértil!
Um abraço.

Glória disse...

As Sofias são sábias e danadas. Minha neta mais nova possui esse belo nome.

Dihelson Mendonça disse...

Só há um ponto obscuro nesse texto tão comovente:

É se

"Sofia ESTAR Mamando",

ou se

"Sofia ESTÁ mamando".

Talvez no calor da escrita, o nobre colega cometeu este deslize ortográfico, ou eu não entendi direito a proposta do ESTAR mamando. Talvez pudesse ser contornado por SOFIA ESTÁ A MAMAR.

"Ou Sofia está a mamar na Sala de ESTAR".

Um grande abraço,

Dihelson Mendonça

José do Vale Pinheiro Feitosa disse...

Não tem obscuridade, foi erro ortográfico mesmo. Postei a primeira versão escrevendo ao ritmo da oralidade (estar e está ficou no nosso linguagem oral a mesma coisa). O que pretendia era usar o verbo estar como auxiliar acompanhado de gerúndio: Sofia está mamando, isso para indicar uma ação contínua como é o ritmo do texto. Aí na versão do blog saiu assim e no texto corrigido para a caixa de e-mail diferente. Claro que a prioridade seria o blog que é público.

Desculpas em regra

Abraços