TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

sexta-feira, 13 de março de 2009

"Neoliberais" do Século XVI (2ª parte)

Outro dos elementos essenciais do que depois se converterá na análise económica da Escola Austríaca é o princípio da preferência temporal, segundo o qual, tudo o resto constante, os bens presentes são sempre mais valorizados do que os bens futuros. Esta doutrina foi redescoberta por Martín de Azpilcurta (o famoso doutor Navarro) em 1556, que por sua vez a tomou de um dos melhores discípulos de São Tomás de Aquino, Giles de Lessines que, já em 1285, havia afirmado que “os bens futuros não são tão valorizados como os mesmos bens disponíveis de imediato, nem têm a mesma utilidade para os seus proprietários. Por esta razão, o seu valor de acordo com a justiça há de ser mais reduzido” (Dempsey, 1943: 214).Os efeitos distorcivos da inflação, entendida como toda a política estatal de crescimento da oferta monetária, foram também estudados analiticamente pelos escolásticos. Neste âmbito, destaca-se o trabalho do padre Juan de Mariana intitulado De monetae mutatione, traduzido para castelhano posteriormente pelo autor com o título de Tratado y discurso sobre la moneda de vellón que al presente se labra en castilla y de algunos desórdenes y abusos (Mariana, 1987). Neste livro, publicado pela primeira vez em 1605, Mariana critica a política seguida pelos governantes da sua época de baixar de forma deliberada o valor da moeda, embora não utilize o termo “inflação”, desconhecido na altura, explica a forma como os efeitos da mesma são o incremento dos preços e a desorganização geral da economia real. Mariana critica também a política de estabelecimento de preços máximos para lutar contra os efeitos da inflação, política que ele considera não só incapaz de produzir efeitos positivos, mas também altamente danosa para o processo produtivo. Melhora-se assim a análise muito mais simplista, por ser exclusivamente macroeconómica, efectuada anteriormente por Martín de Azpilcueta em 1556, e antes dele por Copérnico no seu livro Monetae cudendae ratio, onde foi exposta pela primeira vez a típica versão, muito simplificada e mecanicista, da teoria quantitativa da moeda hoje tão divulgada (Azpilcueta, 1965: 74-75).São também importantes as contribuições dos nossos escolásticos para a teoria bancária (Huerta de Soto, 1997-1998: 141-165). Assim, por exemplo, é claríssima a crítica do Doutor Saravia de la Calle ao exercício da banca com reserva fraccionária, no sentido de que a utilização em benefício próprio mediante concessão de empréstimos a terceiros, de dinheiro que é depositado à vista nos bancos é ilegítima e implica um pecado grave, doutrina que coincide plenamente com a que foi estabelecida pelos autores clássicos do direito romano, e que surge naturalmente da própria essência, causa e natureza jurídica do contrato de depósito irregular de dinheiro (Saravia de la Calle, 1949: 180-181, 195-197). Também Martín de Azpilcueta e Tomás de Mercado desenvolveram uma análise rigorosa e muito exigente sobre a actividade bancária que, embora não chegue aos níveis críticos de Saravia de la Calle, inclui um excelente tratamento das exigências que a justiça impõe que se observem no contrato de depósito bancário de dinheiro. Uns e outros, portanto, exigem implicitamente que a actividade bancária se exerça com um coeficiente de caixa de cem por cento, proposta esta que haverá de converter-se num dos elementos fundamentais da análise austríaca relativa à teoria do crédito e dos ciclos económicos (Huerta de Soto, 1998). Menos rigorosa e, portanto, mais compreensiva com o exercício da banca com reserva fraccionária, é a análise de Luis de Molina e Juan de Lugo, ainda que, de acordo com Dempsey, se estes autores tivessem conhecido detalhadamente o funcionamento e as implicações teóricas da banca com reserva fraccionária, tal como os mesmos foram desenvolvidos por Mises, Hayek e o resto dos teóricos da Escola Austríaca, o processo de expansão do crédito e inflação fiduciária originado pela banca com reserva fraccionária teria sido considerado, pelos próprios Molina, Lesio e Lugo como um vasto e ilegítimo processo de usura institucional (Dempsey, 1943: 225-228).Interessa, não obstante, ressaltar como Luis de Molina foi o primeiro teórico a salientar que os depósitos e o dinheiro bancário em geral, que ele denomina em latim chirographis pecuniarum, é parte integrante, da mesma forma que o dinheiro em espécie, da oferta monetária. De facto, Molina expressou em 1597, muito antes de Pennington em 1826, a ideia essencial de que o volume total de transacções monetárias que se efectua numa feira não poderia ser pago com a quantidade de dinheiro metálico que na mesma muda de mãos, se não fosse pela utilização do dinheiro que os bancos geram através do registo dos seus depósitos e da emissão de cheques sobre os mesmos por parte dos depositantes. De tal forma que, como resultado da actividade financeira dos bancos, se cria a partir do nada uma nova quantidade de dinheiro sob a forma de depósitos que é utilizada nas transacções (Molina, 1991: 147).Finalmente, o padre Juan de Mariana escreveu outro livro intitulado Discurso sobre las enfermedades de la compañia, publicado com carácter póstumo em 1625. Neste livro, Mariana realiza uma análise puramente austríaca relativamente à impossibilidade de um governo poder organizar a sociedade civil com base em ordens coercivas, e isto devido à falta de informação. De facto, é impossível ao Estado obter a informação de que necessita para dar um conteúdo coordenador às suas ordens, pelo que a sua intervenção tende a criar desordem e caos. Assim, Mariana, referindo-se ao governo, disse que “é um grande desatino que o cego queira guiar aquele que vê”, frisando que os governantes “não conhecem as pessoas, nem os factos, pelo menos, com todas as circunstâncias que os envolvem, de que depende uma decisão acertada. É forçoso que se caia em muitos e graves erros, e que isso cause descontentamento às pessoas e as leve a menosprezar um governo tão cego”; conclui Mariana que “é louco o poder e o mando”, e que quando “as leis são muitas e em demasia, como não se podem preservar todas, nem sequer saber, a todas se perde o respeito” (Mariana, 1768: 151-155, 216).Em suma, os escolásticos espanhóis do nosso Século de Ouro foram já capazes de articular o que depois viriam a ser os princípios mais importantes da escola austríaca de Economia e, em concreto, os seguintes: primeiro, a teoria subjectiva do valor (Diego de Covarrubias y Leyva); segundo, a descoberta da relação correcta que existe entre os preços e os custos (Luis Saravia de la Calle); terceiro, a natureza dinâmica do mercado e a impossibilidade de alcançar o modelo de equilíbrio (Juan de Lugo e Juan de Salas); quarto, o conceito dinâmico de concorrência entendida como um processo de rivalidade entre os vendedores (Castillo de Bovadilla e Luis de Molina), quinto, a redescoberta do princípio da preferência temporal (Martín de Azpilcueta); sexto, o efeito profundamente distorcivo que a inflação tem sobre a economia real (Juan de Mariana, Diego de Covarrubias e Martín de Azpilcueta); sétimo, a análise crítica da banca exercida com reserva fraccionária (Luis Saravia de la Calle e Martín de Azpilcueta); oitavo, a descoberta de que os depósitos bancários são parte da oferta monetária (Luis de Molina e Juan de Lugo); nono, a impossibilidade de organizar a sociedade através de ordens compulsivas, por falta da informação necessária para dar um conteúdo coordenador às mesmas (Juan de Mariana), e décimo, a tradição liberal de que toda a intervenção injustificada no mercado constitui uma violação do direito natural (Juan de Mariana).Existem, portanto, razões fundadas para concluir que a concepção subjectivista e dinâmica do mercado, ainda que tenha sido retomada e definitivamente impulsionada por Menger em 1871, teve início na nossa pátria. A tradição do pensamento económico da Escola Austríaca tem, pois, a sua origem intelectual em Espanha e mais concretamente numa escola, a de Salamanca, que, da mesma forma que a moderna Escola Austríaca, e em profundo contraste com o paradigma neoclássico, se caracteriza sobretudo pelo grande realismo e rigor dos seus pressupostos analíticos.

Sobre o autor:
Jesús Huerta de Soto (Madrid, 1956) é um economista da Escola Austríaca e catedrático de economia política da Universidade Rey Juan Carlos de Madri. Obteve títulos de doutor em direito em 1984, e em ciências econômicas e empresariais em 1992, ambos pela Universidade Complutense de Madri. Fez também MBA na Universidade de Stanford. É professor de economia política na Facudade de Direito da Universidade Complutense de Madri desde 1979, atualmente é um catedrático da Facudade de Ciências Jurídicas e Sociais da Universidade Rey Juan Carlos. Em 1983 obteve o Prêmio Extraordinário de Economia Rey Juan Carlos. (Fonte:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Jesus_Huerta_de_Soto)

2 comentários:

Armando Rafael disse...

Muito bom!
parabéns pela postagem.

Antonio Sávio disse...

Obrigado Armando e desculpe-me os demais leitores/membros do blog pelo tamanho do artigo.
Um abraço a todos.