"Tudo está fluindo.
O homem está em permanente reconstrução;
por isso é livre : liberdade é o direito de transformar-se."
(Lauro de Oliveira Lima)
O desenvolvimento de uma Indústria Farmacêutica, a partir do fim do Século XIX, trouxe um impacto enorme no tratamento de patologias várias e na melhoria significativa da qualidade e esperança de vida. O seu nascimento coincide com o exato momento em que a Medicina começou a se afastar do empirismo do encantamento, dos fluidos e humores e vestiu-se de uma couraça científica. A partir deste momento, singrou mares nunca dantes navegados. Hoje contamos com um arsenal terapêutico e diagnóstico capaz de fazer a humanidade viver saudável e produtiva por pelo menos mais quarenta anos. A Imaginologia, os Transplantes, as Cirurgias minimamente invasivas, a cirurgia robótica, a Inseminação Artificial, a Fecundação In vitro, a Clonagem, o Mapeamento Genético levariam qualquer esculápio novecentista a ficar de queixo caído. Poucos avanços médicos, no entanto, tiveram tanto impacto na vida e costumes da humanidade como aquele acontecido em Junho de 1960, há exatos 50 anos.
Desde épocas imemoriais, tentaram os estudiosos controlar os meios de reprodução. Os Egípcios já descreviam alguns métodos de barreira utilizando perigosamente excremento de crocodilo e emplastros vegetais, no sentido de evitar a gravidez. As preocupações com o superpovoamento da terra já azucrinavam estudiosos como Malthus , no início do Século XIX, preocupados com o crescimento desordenado da população, bem acima da produção de alimentos. Um dos mais populares métodos anticoncepcionais teve sua popularização justamente neste período: a Camisinha. Feita com pele ou tripas de animais, aperfeiçoou-se sobremaneira após a descoberta da vulcanização da borracha , nos meados dos novecentos. Em 1870, um alemão, o Dr. Mansiga inventou o Diafragma. Estes métodos seminais foram uma crescente exigência da sociedade européia, em intenso processo de urbanização, em plena Revolução Industrial.
Mais uma vez devemos à combatividade de duas mulheres a busca incessante pelo controle da natalidade. A escocesa Marie Charlotte Stopes , no início do Século XX, escreveu um primeiro Guia de planejamento Familiar e fundou, com o esposo, a primeira Clínica dedicada ao Controle da Natalidade, aí pelos anos 20, no Reino Unido. Não menos combativa, a norte-americana Margaret Sanger fundou, na mesma época, uma Clínica idêntica em Nova York e também a Liga de controle da Natalidade. Sanger teve a Clínica fechada por duas vezes e freqüentou os porões de algumas cadeias. Deve-se à tenacidade de Sanger a busca por um contraceptivo oral barato, após contactar o cientista George Pincus que se uniu aos doutores Chang e Rock e estudando profundamente a ação dos hormônios femininos, desenvolveram a primeira pílula anticoncepcional , aprovada pelo FDA , no histórico 23 de junho de 1960. No Brasil, a pílula aqui aportou em 1962 e nunca mais Pindorama foi o mesmo.
A pílula surgiu , como num alinhamento de planetas, em plenos anos 60, junto com mudanças que avassalaram definitivamente a face da terra. Os Movimentos Hippi e Beat, o Feminismo, os Beatles, a Revolução Cubana, a explosão mundial do Rock, as revoltas estudantis de Paris, a Ditadura Militar, Woodstock. A partir daquele momento, o corpo voltou-se para o hedonístico e fugiu do meramente reprodutivo. As mulheres puderam partir para o mercado de trabalho, buscando caminhos próprios. Abandonaram definitivamente o guarda-chuva masculino. O Bíblico “Crescei e Multiplicai !” transformou-se , rapidamente, no “Controlai e Trabalhai !”. E mais: o controle da reprodução levou o sexo feminino a uma liberdade sexual até então inimaginável, as donzelas puderam por fim provar de todas os frutos da árvore do bem e do mal. Amarras religiosas, éticas, morais se esfaceram como que por encanto. O Sexo deixou de ser uma exclusividade do casamento e das contravenções amorosas. A Lua de Mel antecipou-se do matrimônio para os primeiros namoricos. As famílias minguaram de tamanho e já há casais que simplesmente optam por nunca ter filhos, decisão que enlouqueceria qualquer patriarca bíblico. Minorias, que até então viviam sufocados em seus armários, arrebentaram as portas e gavetas na certeza que a felicidade deve ser perseguida por todos. Casamentos se dissolvem quando naturalmente acabam ,quando vencem seu prazo de validade, ninguém mais pode ser condenado às galés perpétuas.
Este é um mundo melhor ? Certamente que sim ! Claro que existem novas armadilhas, novos abismos nas novas veredas que a humanidade trilha nestes novos tempos. Neste momento, no entanto, mais que nunca em toda a história do homem, exercemos o direito sagrado de tropeçar, cair e muitas vezes saltar escarpa abaixo. A vida , afinal, é este pantanal cheio de escolhos e escolhas. Estamos em permanente reconstrução, ora pílulas !
J. Flávio Vieira
4 comentários:
Zé,
As químicas também revolucionam o social. O cultural nem se fala com a estética lisérgica ou com a boemia de bar. Agora a pílula vai tão longe que muda uma lei imutável das espécies sexuadas. Era imutável, agora não mais. E tem outra revolução da química, esta a favor dos homens. São os, como é mesmo a denominação farmacológica, fisiológica deste tal de Viagra?
Abraço ao Zé do Vale que tão bem lembrou dos novos espinafres ( agora tb feminino) para bombar os Popeys desta vdia.
Bonito o texto de Zé Flávio com as observações sapientes de Zé do Vale.
No que me toca, só enalteço a clarividência dos dois renomados médicos. Isto para dizer que os dois seguem o discurso sobre a saúde/doença não mais pelo mero exercício cartesiano do cuidar, mas pelas recentes ingerências das Ciências Sociais na questão do corpo.É neste campo em que a saúde é entendida, também, como produto das determinações da cultura sobre os indivíduos.
Zé Fávio e Zé do Vale tem me fornecido reflexões para as minhas aulas de Antropologia aplicada às Ciências Sociais, no curso de Enfermagem da Urc.
Abraço ao Zé Nilton e grato pelas colocações. Lembro o Pedro Nava que dizia ser a leitura de Balzac tão importante ao médico qunto o conhecimento do Tratado de Medicina Interna.Percebo que este elo vem se esfacelando desde o momento em que a Medicina deixou de ser meramente empírica, aí pelo final do Século XIX. A tecnologia foi pouco a pouco tomando o lugar do humanismo, quando devia se somar a
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