Rejane Gonçalves
Pedro já chegara à eternidade velho. Incomodava-se, talvez por isto, ter que ficar quase sempre sozinho, ele e as mil e tantas chaves tilintando no bolso de seu camisolão, desassossegadas, por terem, elas e Pedro que se desdobrar entre aquele mundo de casa, o cuidado com as almas moradoras e ainda a prestimosa recepção às almas recém libertas do corpo. Não era fácil entender os sumiços, as saídas noturnas do Senhor e muito menos as desculpas, os motivos escusos de que se valia para abandoná-lo ali. Só. Imerso na estúpida brancura desse mar de nuvens.
Hoje, mais do que nunca, lhe parecera pouco convincente, poderia dizer até inacreditável o teor da explicação recebida, tanto que por não ser capaz de ultrajar o respeito encaliçado em sua mente de servo, fez que sim com a cabeça, quando Ele contara com voz mansa, igual se quisesse acalmar uma criança inconsolável, que àquela noite teria de mais uma vez se ausentar.
Moveria seu Espírito feito asas de uma imensa águia sobre a face de todas as águas. Era preciso, dissera, para satisfazer ao amor de uma criatura, na qual, num tempo muito mais distante do que seja qualquer tempo atrás, havia plantado um desejo, uma semente da criação de uma mulher, a mesma que Ele, com a barba por fazer e toda sua competência de Criador, não conseguira terminar. Da primeira vez por causa de uma estúpida preguiça. Da segunda, por tédio, fastio, sei lá. Da terceira vez por não suportar que os olhos, escolhidos para ela, fitassem o Eterno com a intimidade de um irmão gêmeo. Não achava justo olhar para dentro de uma velhice mais velha que a Dele. Era ameaçador. E que portanto ele, Pedro, entendesse. Precisava ir. Estar presente na hora exata de colher o poema na palma da mão.
Zangado, Pedro abriu o pesado portão de ferro, aquele que sempre fora reservado ao Senhor. Viu a túnica branca esvoejante se transmutar em alvas penugens de um pássaro descomunal. Seus olhos já acostumados à repetição desta cena, nela não mais se fixavam. Seu coração – mesmo que ordenasse cala-te, o que vês é puro artifício, magia primária apenas – nunca conseguiu se acostumar. Jamais obedeceria a ordem de Pedro e de novo bateu desgovernado ante a grandiosidade do espetáculo. Cada vez mais descontente Pedro desejou que o poema não ficasse pronto, e se ficasse que o poeta, zeloso de sua criação, conseguisse escondê-la do Criador.
Com o alvorecer, ele ouviria bochichos, veladas notícias das águas da Terra. Aquela foi a noite em que todas serenaram. Adejando sobre elas, o leve tremular das asas de Deus assemelhava-se a um pano translúcido que sobreposto à face das águas, controlasse suas ondulações, regendo o ritmo, suavizando o movimento. Era uma Bandeira hasteada, entregando-se e resistindo ao vento.
(texto escrito após a leitura do poema “Teresa” de Manuel Bandeira)
Um comentário:
Sem comentários...Bom demais!
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