TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

quarta-feira, 29 de agosto de 2007

Sobre memória e Bytes




No meio de uma conversa sobre poesia, coisa rara nos tempos de hoje, tentei lembrar um poema de Tu Fu, poeta chinês da dinastia Thang ("naquela época cada homem era um poeta"), corajosamente traduzido por Cecília Meireles.

"Vinde! Em redor da minha casa canta
um riacho alegre como a primavera.
Vereis talvez gaivotas,
se o vento se levantar."

Não consegui ir além. A memória traiu-me. Prometi ao meu interlocutor que mandaria o poema completo pelo correio eletrônico.

Para um grego clássico, eu acabara de cometer um sacrilégio, falhando no que era uma das mais importantes qualidades do homem: a memória. Entre a data da realização do Banquete e a sua narrativa por Apolodoro, passaram-se muitos anos, mas não existem dúvidas quanto à exatidão do que é narrado. É difícil para um homem contemporâneo conceber um tempo em que os registros do saber se faziam por outros meios que não fossem os símbolos da escrita ou das imagens. Esse tempo está absurdamente distante de nós. Há tantos recursos para substituir nossa armazenagem de conhecimento, que já não se soma dois mais dois sem o uso de uma calculadora.

A presença de armas e sacrifícios animais, em túmulos do Neandertal, indicam que aquele homem distante já pensava sobre a morte. Só com os primeiros registros escritos temos a certeza desse pensamento. Mas podemos arriscar um palpite de que os feitos da tribo eram guardados na memória e transmitidos de geração em geração. As inscrições rústicas encontradas nas cavernas são as primeiras tentativas de firmar essa memória.

A poesia chinesa da dinastia Thang descende de uma velhíssima poesia de tradição oral, compilada e fixada por Confúcio no Che keng. O Ramayana, livro clássico da tradição hindu, que narra a epopéia de Rama, foi guardado de memória durante séculos, até ser fixado de forma escrita pelos sacerdotes brâmanes. Antes, gerações de jovens se dedicavam, desde cedo, ao duro exercício de guardar algumas das suas muitas partes de cor, exercitando-se durante toda a vida. Para isto, perambulavam pelas aldeias e cidades, declamando as peripécias do Deus e, no tempo preciso da velhice, iniciando novos jovens no mesmo ofício.

Falhei na memorização de umas poucas estrofes. Para redimir-me, transcrevi no correio eletrônico o poema que fala de coisas sem muito significado nos nossos tempos: casa, aléias, regato, ninho de andorinhas. Enviei-o e o amigo não recebeu. Houve uma desconexão na hora da remessa e o poema extraviou-se. Fiz duas novas tentativas e misteriosamente a mensagem não chegou ao destino. Desisti frustrado, querendo a todo custo saber em que memória se guardara os versos de Tu Fu.

Sou um narrador sedentário, segundo a classificação de Walter Benjamin. Os outros narradores, quando existiam narradores, eram os viajantes, os que percorriam o mundo em perigos e aventuras e ouviam as histórias de outros homens como eles. Envelhecidos e cansados retornavam às suas pátrias, narrando seus feitos e aprendizados. Estes se incorporavam à crônica local e enriqueciam o repertório dos sedentários, aqueles que no fundo de uma oficina - ferreiros, sapateiros, ourives -, tinham tempo e paciência para remoer o que fora ouvido, e acrescentá-lo ao que aprenderam da tradição.

O ócio é uma das condições para o aprimoramento da narrativa. E a memória do narrador se depura no ócio. Havia uma outra medida de tempo que se perdeu. Nessa medida não se procurava negar a existência da morte. Através da memória o homem afirmava um princípio e um fim, e todo o espaço que permeia esses dois extremos. Não se buscava eternizar o instante, através do registro da imagem, como faz o homem contemporâneo, na tentativa de negar a morte. Tudo fluía como no rio de Heráclito, que nunca é atravessado duas vezes.

A reflexão sobre a morte é uma das condições inerentes à narrativa e ao narrador. Refletir sobre a morte é ter dela uma memória onipresente. A morte foi banida da vida do homem moderno, que tenta de todas as maneiras escamoteá-la. Não existem mais rituais que ensinem o homem a nascer e a morrer. Quando uma pessoa envelhece e adoece, a família a entrega aos cuidados dos médicos e dos hospitais. Se ela fica muito grave, vai para uma UTI, onde a família tem pouco acesso. E quando morre, é encaminhada dentro de um caixão para um velório, onde rapidamente se providencia o seu funeral.

O sentido de eternidade, inerente à narrativa, existe no universo virtual? Nele, se lida com a idéia de que a memória é exterior a nós, podendo ser reativada ou apagada, ao simples toque de botões. O homem contemporâneo negligencia a sua responsabilidade com a memória pessoal e coletiva. No mundo virtual a memória deixa de ser privada e passa a ser compartilhada, já que todos podem ter acesso a ela. Desaparecem o mistério, os tortuosos labirintos, as possibilidades do narrador preencher os vazios da falta com sua invenção e arte. A memória do computador é rígida, fixa, por mais avançado que ele seja. E faltam à máquina as qualidades de um contador de histórias: o olhar complacente, a boa voz, o bom sentimento.

Desisti de enviar o poema pelo correio eletrônico. Temi uma nova cilada, no estilo dos contos de Poe. Numa tarde de ócio, memorizei os versos de Tu Fu. Quando, num dia qualquer, reencontrar o meu amigo, poderei declamar as estrofes restantes:

"Como jamais recebo visitas, não mando varrer as aléias
do meu jardim. Pisareis num tapete de folhas.
Tereis de desculpar-me pelo modesto almoço que vos ofereço..."



Ronaldo Correia de Brito é médico e escritor. Escreveu Faca e Livro dos Homens. Assina coluna na revista Continente e no Site Terra Magazine.

Um comentário:

Dihelson Mendonça disse...

Zé, hoje vc ficou inspirado com aquela primeira postagem sobre Whitman, hein?
Olha o tamanhjo do jornal ? rs rs

Um grande abraço.
E veja aí o lance das crônicas, como vc quer fazer!

Dihelson Mendonça