Carnauba - Cândido Portinari
Quando no mundo mais histórias não houver, o silêncio será óbvio, pois sem qualquer ação humana, narradores não mais existirão. A ação humana no cenário que sustenta a vida redunda sempre em narradores. Malan, nascido em São João do Piauí, criado em Petrolina, narra o salto que todos os brasileiros estão dando nos últimos cinqüenta anos.
Talvez por mais algumas dezenas de anos ainda teremos estas narrativas e depois não mais as encontraremos. Talvez no papel, na ficção das artes cenográficas, como as antigas histórias dos Irmãos Grimm, ainda saberemos dela, mas não mais existirão contemporâneos deste salto. O salto entre a zona rural e a urbana.
Na verdade os humanos estarão vivendo a verdadeira civilização urbana. Alguns a chamarão de globalizada, mas será puramente a colméia sem os espaços imponderáveis das florestas encantadas. Malan ainda fala delas.
Abrir os olhos para a abóbada estrelada no cento do carnaubal
Por oito semanas acompanhar o corte das palhas da carnaúba. Uma vara da altura das palmáceas, em cuja ponta se fixa uma foice afiada. Mãos fortes suspendem o pendão instrumental e com um puxão fatal a palha se desprende em busca do centro da gravidade. Ali chegando, um outro vem com novo instrumento cortante e separa o talo espinhoso do conjunto. Enquanto o talo cortado se deita no chão abandonado a apodrecer, as palhas são arrumadas e amarradas em cangalhas de jumentos. Irão, as palhas, deitar-se coletivamente, como os corpos das fêmeas humanas, no descampado a receber as luzes que o sol desseca.
As últimas semanas. Aluga-se uma máquina de pulverizar a palha da carnaúba. Montada num caminhão velho do qual jamais se separará, a máquina vomita por duas bocas. Por uma delas sai o jato de folha picotada, ajuntada e transportada para a adubagem dos plantios de legumes. Pela outra um saco recebe o jato do pó de carnaúba que resulta em dois produtos. Um abundante e de menor valor e um outro valorizado e mais rico em cera, mas como tudo na economia, de menor demanda.
Imaginas que é isso tudo o que interessa? Não. Malan disse que não. Nada como comer num panelão ao relento, no meio de bocas famintas, com todas as colheres servindo-se na mesma fonte de alimentação. Lá na frente, quando tudo for moeda, um botão estiver te alimentando, lembra-te que o pronome EU se alimenta na mesma panela que Tu e Ele. E quando pronunciamos os três estamos evocando a coletividade.
Igual se teu ser abrir os olhos para a abóbada celeste e através das palhas do carnaubal, lá encontrar todo o universo estrelar a dizer-te que não és pouco, que não és apenas uma gota, tua natureza, na verdade, é tudo isso.
Chega Malan eu estou caindo
Estranhamento. Se no futuro será tão rico como nestas décadas do grande pulo, não se sabe. Mas os costumes que nos acomodam os dizemos tradição, também patrimônio, assim como cultura. Os costumes são como sinto o meu amor pela vida, portanto, outros existem que da vida têm outro amor. Ao encontrar outros costumes os meus costumes se sentirão confrontados e nestas ocasiões terão o que dizer. Ao menos pedir ajuda pelo desconforto que periga em volta.
No Rio Grande do Sul. Porto Alegre é a capital. Em Petrolina o cinema foi um grande encontro. Salão amplo, ventiladores refrescando o ambiente, grande telão e cadeira da madeira mais resistente aos corpos que tanto se diferenciam na balança. Por isso mesmo, ambos, viajantes estrangeiros, foram ao cinema para divertir-se. Ingressos comprados, entregues ao bilheteiro, sessão já começando com as luzes apagadas e as sombras a guiar-lhes em busca de assentos vazios.
Malan senta-se e logo percebe a maciez do estofamento dos assentos e a leve inclinação do encosto da tão confortável cadeira de cinema. Tão diferente dos assentos de madeira de Petrolina. Mal acomoda a respiração no conforto, se agita em seguida.
O amigo dar um grito médio em pleno escurinho do cinema:
- Chega Malan, eu estou caindo.
A gauchada da vizinhança reconhece o sotaque e comenta que se tratam de nordestinos em apuros. E Malan que tudo foi a estranheza acolchoada do cinema de Porto Alegre.
É o ar condicionado ao contrário
Ambos em Blumenau. Tempo frio. Chegam no Hotel e o amigo acostumado aos hábitos de conforto no nordeste, logo pergunta para a recepcionista:
- Tem ar condicionado?
- Não. Não precisa, mas tem aquecedor.
- Aquecedor? Oxém e o que é isso?
Malan, mais rápido que a recepcionista, resolve a estranheza do amigo: - É o ar condicionado ao contrário.
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