TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

terça-feira, 18 de setembro de 2007

Veja Isto !


Segunda-Feira, na Siqueira Campos , todos rotineiramente já o aguardavam. Ele chegava, sôfrego, trazendo as notícias da última “VEJA”, que havia lido , rapidamente pela manhã, para adentrar a praça com ares catedráticos, como se estivesse dando o maior furo jornalístico. Suas opiniões coincidiam tão exatamente com a dos articulistas da Revista Semanal que muitos freqüentadores tinham , inclusive , cancelado a assinatura: pra que gastar , se aquele jornalista improvisado , com regularidade matemática, fazia o relato das mais quentes matérias da semana ? Se isso ainda fosse pouco, relatava com todos os pontos e vírgulas , igualzinho como se estivesse lendo a Revista e , ainda, sem que se precisasse gastar os olhos. Talvez tenha sido por isso que lhe sapecaram o apelido de “Veja Isto”, primeiro porque esta locução era, claramente, o seu prefixo e , depois, por ser nosso jornalista uma mistura perfeita da “VEJA”, com a “ISTO É”.

Semana passada “Veja Isto”, apareceu inspirado. Mal se aproximou dos primeiros bancos e já se formou, incontinenti, uma rodinha, que , em pouco, já não merecia o diminutivo. Parou, observou, teatralmente , a platéia e lascou:
-- Leram a “VEJA” desta semana? Veja Isto! O filho do presidente da “FIAT”, herdeiro da maior fortuna da Itália, um tal de Edoardo Agnelli, com apenas 46 anos de idade, se suicidou: pulou de uma ponte de mais de 80 metros. Alguns amigos de Edoardo disseram que morreu de solidão e desgosto, completou nosso repórter.
Rapidamente os partidos se dividiram, alguns declararam que , rico como era, Edoardo viveu, nas suas quatro décadas, muito mais do que muitos cratenses que venham ,porventura, a se tornar centenários: viagens, carros,festas, mulheres bonitas. Um outro time lembrou que aquilo provava , definitivamente, que dinheiro não trazia felicidade. Havia, no entanto, um ar levemente sádico nas palavras proferidas por estes últimos interlocutores, como se , de alguma maneira, estivessem minorando suas próprias frustrações. Alguns outros, mais sinceros, simplesmente afirmaram que foi bom que aquilo acontecesse , era uma espécie de justiça divina contra os Agnelli que já ,de tão ricos, se vinham sentindo acima de Deus e da morte. A mesma clava do destino , afirmam os mais fatalistas, tinha sido desferida contra Onassis que perdeu dois filhos e os Kennedy que já não conseguem contar as suas baixas.No intervalo entre as opiniões, “Veja Isto” vai acrescentando, em doses homeopáticas, maiores informações sobre a família nobre de Turim e a tragédia que por sobre ela se abateu.Sentado num banco ao lado, um velho de barbas brancas e rosto plácido, ouvia tudo com um ar aparentemente distante e desinteressado. Ninguém lembrou, depois, de um dia já tê-lo visto e, até o preciso momento em que se levantou e dirigiu-se à roda, havia passado totalmente desapercebido. Sua voz saiu mansa , como um cantochão:
--- Amigos, tenho uma opinião diversa da de vocês. Primeiro não posso imaginar um Deus que precise de sacrifícios humanos, como no velho testamento. O Todo Poderoso perdeu um filho também e, na sua imensa piedade, sabe que esta dor está acima de qualquer pecado que possa ser cometido por um ser humano, feito à sua imagem e semelhança. Não concordo, também, com aqueles que sentem um prazer mal disfarçado com o suicídio do Edoardo. Esta tragédia não é uma fatalidade que se abate sobre a família Agnelli, mas sobre toda a raça humana. É a prova que temos sido incapazes de construir a felicidade, mesmo tendo às mãos todos os instrumentos aparentemente indispensáveis. Quando um jovem comete suicídio, isto é apenas a prova testemunhal que não temos sido suficientemente inteligentes em edificar um planeta sadio, esperançoso e respirável. Paro os que dizem que dinheiro não traz felicidade, vou mais além: o dinheiro pode até trazer uma felicidade transitória e etérea, mas é freqüentemente uma das maiores causas de infortúnio. Imaginem a essência da vida como se fosse uma fogueira de São João a se acender. O mais das vezes juntamos uma grande quantidade de materiais rapidamente inflamáveis, na tentativa de iniciar o fogo: papel, cascas de árvores, pequenos gravetos ressequidos. Ao aproximar a primeira chama , estes materiais rapidamente se inflamam, fazem um fogo bonito de flamejantes labaredas, mas que num átimo acabam o espetáculo. O mais das vezes o íntimo da fogueira permanece intocada, após o fugaz incêndio inicial. A arte de atear fogo à fogueira passa pela paciência beneditina, pelo sopro, pelo choro da madeira ao se ver queimando. O dinheiro e todos os bens materiais são justamente aqueles gravetos facilmente inflamáveis, que trazem uma alegria repentina, mas perigosamente volátil. A felicidade verdadeira precisa ser aprendida da essência do fogo, passa pelo sopro do autoconhecimento, pela paciência e pelo sofrimento da madeira ardente.Essa fogueira, uma vez ateada, queima com o passar dos anos, mas , no final, restarão sempre muitas brasas em meio a tantas cinzas, nos dando uma eterna sensação de morna tranquilidade. Edoardo construiu uma enorme pira de palha, que não tinha lenha, mas que brilhou intensa na sua fugacidade. Quantos de nós( não tendo a inflamável matéria para o fogo incipiente)) sequer encostamos a madeira para o São João das nossas vidas e, se encostamos, teremos a chama primal ou a paciência de soprar as achas verdes e molhadas ?
O velho saiu calmamente como veio. Todos embasbacados o ficaram observando desaparecer na Mons. Assis Feitosa. Era como se esperassem que uma nave espacial o viesse recolher. “Veja Isto”ainda tentou emendar na notícia seguinte, mas já não havia clima: havia perdido a audiência definitivamente.


J. Flávio Vieira

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