TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE
quinta-feira, 6 de setembro de 2007
Zuza e o Pássaro
Zuza Ricardo escarafunchou a casa com olhos de detetive.
Não tinha muito mais do que se desvencilhar. Vendera a foice, a enxada, algum arroz que guardara no paiol, pensando em tempos difíceis Já não havia do que dispor. Até a carroça ,que no verão o ajudava a recolher algum dinheiro em pequenos fretes na cidade, já se fora - pela primeira vez partira antes do burro que a seguiu uma semana após. Os filhos de Zuza dormem nas redes que cortam diagonalmente a sala e, em pouco, despertarão carregando no ventre aquele vazio inconsolável. Só uma Graúna e um Sofreu, em dueto, alegram um pouco a sombria atmosfera da casinha de taipa. Zuza, como que despertando de um sonho, com um satânico brilho no olhar, tem a idéia única e salvadora: “Vou vender os dois passarinhos, com sorte pego 20 a 30 Reais e compro alguma coisa prá comer!” Por um momento ainda hesita : aquele dueto era ainda seu único motivo de alegria e vê algumas lágrimas se formarem , embaçando a dura realidade que se lhe deparava aos olhos. Ante a inevitabilidade da perda, com cara de um colecionador que se vê privado de um Renoir, toma as duas gaiolas de canafístula e fica, pacientemente, na estrada, apresentando-as aos carros ,que passam em desabalada carreira, mais preocupados com pão que com maviosos cânticos de aves. Na auto-estrada o choque confuso de tantas realidades: o progresso no carro e no asfalto, o atraso na fome de Zuza e a liberdade atada no recluso gorjeio dos pássaros...
Repentinamente pára uma viatura policial e Zuza se anima: finalmente alguém interessado na compra do Sofreu e da Graúna e, por um momento, já não mais conduzia as gaiolas; viu em suas mãos uma feira inteira de arroz, milho, feijão, um frango de FHC e a felicidade estampada nos olhos fartos dos filhos. Zuza, até o presente instante, não conseguiu entender bem porque deram liberdade aos pássaros e lhe fizeram herdar o destino deles. Os policiais lhe explicaram que cometera um crime grave e inafiançável ao prender passarinhos e negociá-los, um crime ecológico, segundo dizem e repetem. Zuza busca, desesperadamente, encontrar uma maneira de enquadrar o Homem entre os animais da natureza, para que possa ser preservado como uma espécie prestes a entrar em extinção. Para que seus filhos não mais precisem morrer de fome, possam ter assistência médica igualzinho ao cachorrinho poodle da madame e que também não precise nunca mais vê-los vendidos aos políticos, aos patrões e aos bordéis, no negro mercado persa que são as relações humanas.
Através da grade da cela Zuza vê um canário cantando num cajueiro e, num átimo, deseja ser um pássaro, com comida farta e variada, protegido das leis e dos homens, capaz de alçar vôos sem tirar brevê e com a invejável capacidade de cantar alegremente as angústias da prisão ou as primícias da liberdade...
J. Flávio Vieira
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