TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

quarta-feira, 24 de outubro de 2007

Ignorância ou preconceito?



Um escritor do Recife teve seus originais devolvidos por uma editora de São Paulo, alegando-se que não havia interesse na impressão do livro por conta de seu conteúdo fortemente regional. Lembrei imediatamente de Guimarães Rosa, apontado como mais um regionalista, na época em que a Livraria José Olympio o lançou. Saudades de quem inventou um idioma para falar do sertão. E saudades de Manoel Bandeira, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Gilberto Freyre, geração de escritores chamados de regionalistas, que não estava nem aí para o rótulo, e cuidou apenas em fazer a boa literatura brasileira. Vocês conhecem safra melhor? Se acrescentarem à lista os que vieram logo em seguida como João Cabral e Osman Lins, é um estouro.
Passado o Movimento Regionalista, aquele do romance de 1930, inventado por Gilberto Freyre para contrapor-se à onda modernista de 1922, o termo regionalista ganhou significado pejorativo, referindo-se a tudo o que se produzia fora do eixo Rio/São Paulo e, portanto, de qualidade suspeita. Escritor regionalista deixou de ser aquele que fez parte do movimento do Recife e virou a caricatura de quem escreve trôpego e conta causos.

Em Houaiss, o verbete regionalismo pode ser lido como "caráter de qualquer obra (música, literatura, teatro etc.) que se baseia em ou reflete ou expressa costumes ou tradições regionais". Para não ser considerado um regionalista, o escritor pernambucano precisaria ter escrito um texto sem nenhum caráter, algo tão sem identidade quanto um hambúrguer da McDonald's, que tanto faz ser comido na China, na Rússia ou nos Estados Unidos porque o sabor é sempre o mesmo.

Se a recusa a tudo o que cheira a regional fosse levada a sério pelo público, não existiria o blues, o jazz, o gospel, o tango, a rumba, o samba, o baião, o chorinho, o axé... Felizmente, há um critério de seleção mais abrangente do que o gosto de alguns editores e donos de gravadoras. Muita coisa que hoje soa universalista surgiu no fundo de um quintal, numa impressorazinha de esquina, numa sala pequena de uma casa de subúrbio ou dentro de uma igreja, sem maiores pretensões de ir além da rua ou do bairro.

Essa moda de criar para um mercado global é recente. Os espanhóis escreviam romances de cavalaria porque os cavaleiros andantes faziam parte da vida espanhola. Já imaginaram Cervantes criando a Divina Comédia ou o Decamerão? Impossível. A cultura e a realidade da Itália eram outras. Nenhum escritor era pago por uma grande editora para viajar ao Afeganistão e produzir um romance sobre mulheres oprimidas pelos maridos e vestidas em burkas ou sobre terroristas talibãs. O usual era um mergulho dentro do próprio universo em que o escritor existia como fez Machado de Assis, talvez o mais regionalista dos nossos escritores se considerarmos que ele viu o mundo na perspectiva do Rio de Janeiro.

Eu aceitaria a recusa ao livro do pernambucano, se a editora alegasse que o rapaz não escreve bem. Esse é o único motivo justo para se recusar um escrito. Dizer que não presta porque soa regional é um preconceito tão escandaloso quanto proibir que negros subam pelo elevador social.




Ronaldo Correia de Brito é médico e escritor. Escreveu Faca e Livro dos Homens. Assina coluna na revista Continente.


Fale com Ronaldo Correia de Brito: ronaldo_correia@terra.com.br

3 comentários:

Dihelson Mendonça disse...

Exatamente por este motivo, creio que o livro citado ainda será um Best-Seller.

Do regional é que sempre se passou para as coisas mais universais. Assim a história tem demonstrado. Um se alimenta do outro.

Abraços, Dr.

Dihelson Mendonça

Carlos Rafael Dias disse...

Como bem disse o eterno Martins Filho: Do regional ao universal...

Amanda Teixeira disse...

O sertão é o mundo.
A aldeia da gente é sempre universal.

Mas o que se pode fazer numa época de "Amores Expressos"?