TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

sexta-feira, 9 de novembro de 2007

MISAEL & ZACARIAS


Creio que o leitor, inteligente e ágil, já deve ter percebido. Basta ter se refestelado na poltrona e fitado a telinha por alguns momentos no último ano. Nem falo no horário eleitoral que aí já se corre o risco de overdose. Vejam só o sarapatel : o cuecão do Adalberto, o mensalão do Valério, a dinheirama do Maluf, os vestidos da esposa do Alckmim, a amnésia premeditada de alguns governantes, o doce do dossiê que lambuza o PSDB e o PT, o Pitta sem pejo e sem pito, o apetite das sanguessugas, o depoimento bombástico das ex-esposas. A conclusão é simples, meus amigos, sem mentira não existe política. A arte do engodo e da desfaçatez está intimamente ligada à arte de governar.Se um Deus, num passe de mágica, arrancasse deste mundo a possibilidade de burlar e ludibriar estaria, automaticamente, exterminando os políticos dos palcos deste mundo. O horário eleitoral acabou por me encher o saco. Confesso que até já me vinha acostumando com a conversa mole, com o miolo de pote, com as histórias para o boi e toda a fauna dormirem. Mas a caixa d´água da paciência locupletou-se e começa a vazar pelo ladrão( perdoem-me o trocadilho).Já não suporto os mentirosos oficiais, tão pouco criativos, dissimuladores baratos , engabeladores de meia tijela. Abaixo os Mandrakes de última hora, os neófitos de Pantaleões, os ilusionistas de escola primária !
Lembra-me , imediatamente, com rara saudade, de alguns famosos sofistas desta cidade. Teciam estórias absurdas e enviesadas com um talento de dar inveja a qualquer senador. Criavam fábulas surrealistas tão palatáveis neste nordeste profundamente surreal. Não pretendiam prejudicar ninguém , nem tapear os amigos. Untavam suas potocas no tempero da pantomina para torná-las jornalística e ficcionalmente mais atraentes.Para tanto tinham que acreditar, profundamente, naquilo que contavam. Utilizavam, no fundo, as artimanhas de qualquer escritor, dosando os molhos e os condimentos necessários para apurar o sabor de suas histórias.
O Crato um dia já foi repleto destes embromadores de ocasião. Antes da ditadura televisiva , a vila carecia de ficcionistas da oralidade que povoassem o mundo com novelas, seriados e filmes e , até, talk-shows. Vieram-me à mente dois destes célebres ilusionistas que emprenharam de mistério a minha infância. O primeiro, Misael, possuía um bar ali perto da Travessa Califórnia, na Bárbara de Alencar. O outro ainda se encontra vivinho da silva , chama-se Zacarias e mora para as bandas da Santa Fé, no sítio Angico. Arranco com fórceps, das zonas abissais da memória duas histórias destes ficcionistas da oralidade. Alguns ouvintes, certamente, se sentirão familiarizados com estas lorotas , mas aqui as deixo impressas no papel, como lembrança de um tempo em que até a mentira carregava consigo um ar de provinciana ingenuidade.
Zacarias saiu cedinho, no domingo, para a missa na igrejinha de Santa Fé. Segundo ele, precisou dar água ao gado e atrasou-se um pouco, já saindo meio apressado, pela vereda, temendo chegar depois da elevação. Lá pras tantas, deu uma topada destas de arrancar a cabeça do dedão e quebrou cabresto da chinela currulepe. Rogou uns dois ou três palavrões ( pensava em se confessar , mesmo) e usou a tradicional maneira de resolver o problema : arrancou um cipó e substituiu o cabresto quebrado , fixando-o com um nó de porco em cada extremidade. Tocou o passo em procura da igreja. Quando lá chegou, em plena missa, sentiu como se alguma coisa mexesse entre seus dedos do pé , justamente, o direito que sofrera o acidente há pouco. Prestou a atenção e só aí compreendeu :
--- Eu tinha colocado no lugar do cabresto não era uma embira não, meu senhor, era uma cobra cipó e a bicha não parava de se mexer como se quisesse armar bote !
Misael, por sua vez, tinha duas estórias clássicas. Viveu numa época em que a caça na chapada fazia-se absolutamente legal. Em finais de semana trupes de cratenses subiam a serra para caçar cutias, tatus , veados e, principalmente, litros e mais litros de aguardente. Contava ele que numa destas caçadas, em julho, num frio de tiritar, esqueceu uma cabaça cheia d´água que levara em feitio de cantil. Deixara dependurada por uma corda amarrada no gogó, no galho da árvore que usara como espera. Só deu pela perda no outro final de semana. Dirigiu-se para o local e, em lá chegando, deparou-se com um quadro típico de Salvador Dali:
--- O cupim tinha comido a cabaça toda, mas vocês podem acreditar, o frio era tanto que encontrei ainda a água virada em gelo, dependurada na corda !
De outra feita , Misael nos conta, sem permitir que ninguém fizesse cara de riso ou de pouco caso perto dele, uma outra potoca de caçador. Estava na serra, numa espera, à noite e colocara a ceva próximo à árvore em que estava trepado. Começou, então, a ouvir uma música entrecortada e que se repetiu durante toda a madrugada :
--- Carolina , Hum... Carolina Hum... Carolina Hum ....
Não conseguiu dormir tentando descobrir o porque daquele mantra. Seria uma visage , coisa de alma de outro mundo ? De manhãzinha, por fim, descobriu o mistério:
--- Fui acompanhando a música até que cheguei num pé de unha de gato. Lá em cima estava um pedaço de disco, um velho compacto de Luiz Gonzaga, que alguém jogou no mato. Pois num é que quando o vento soprava, o disco rodava e um espinho da unha de gato passava no disco e aí saía a música da metade do disco velho, como se fosse de uma radiola : Carolina HUM... Carolina Hum...
Estes eram alguns dos nossos Barões de Munchausen. Doces ilusionistas de um tempo em que ainda existiam mistérios a ser desvendados. Uma época onde os bichos mais aterradores deste mundo eram a Caapora, o Pai da Mata e Vicente Finim. A mentira ainda não havia se transformado na oficial arte de burlar, de engabelar, um mero instrumento de encher as burras com o dinheiro do povo. Hoje Misael e Zacarias perderam totalmente o cartaz , é que os políticos mentem tanto, tanto que até mesmo o contrário do que eles afirmam ainda é mentira.

J. Flávio Vieira

Um comentário:

José do Vale Pinheiro Feitosa disse...

Zé: o que se quer, o que se bebe, o que se come nesta via é uma mentira deslavada , ai,ai. O que se reza, o que se perdoa, o que preza é uma ilusão ai ai. O que se promete, o que se devolve, o pedaço que se fica é a mentira derradeira e vai. O que se ama, o que se dana, o que se ajuiza, é uma grana ai ai. O que se sonha, o que se luta, o que se tem, é um abismo e cai. O político que se tem, é coelho roedor, é guardador e armador ai ai. A sociedade que se tem, tem corrida de boiada, tem boiadeiro de chicote, ai ai.

E assim o Brasil chupou a primeira parte e um antigo samba e não soube compor a segunda parte.