TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

Balão

Sentado à beira do caixão, impotente como um eunuco de harém, põe-se a pensar na iniqüidade da existência. Madrugadinha , restavam no velório apenas os familiares mais renitentes, os insones e um ou outro bêbado. Script ruim, o teatro até se vira bem montado. Velas imprimiam uma contraluz líquida na pequena sala do casarão. Flores buscavam inutilmente imantar de vida, a nívia face do menino deitado inerte no ataúde. Ao derredor beatas, como num coro de teatro grego, balbuciavam preces, tentando colher alguma transcendência da constatação dura, única e inevitável. Próximo à porta da frente , os homens em vigília da catarse, pés ao chão, comentavam assuntos do dia-a-dia. À distância , tudo tende parecer absolutamente normal. No olho do furacão, no entanto, Zildo não conseguira perceber muito bem o ocorrido. Como numa amputação sem analgesia, não podia ter a dimensão exata da perda. Ainda atônito, não sentia dor, apenas uma sensação de vazio, de oco. Mais tarde, imaginou, viriam as dores lancinantes do membro fantasma, noite após noite mastigando a fronha do travesseiro. Agora, no entanto, talvez por conta do clima, do cenário surreal, carregava aquela placidez dos campos desertos dos quadros de Dali , como se os relógios derretidos tivessem também liquidificado o tempo e a vida.
Ali, refletiu sem muita convicção, estava exposta, como um nervo cruento, a fragilidade de ser. Os homens se apinhavam não diante de um morto, mas em frente de um espelho, acompanhando o próprio funeral. Não bastasse a brevidade da peça, ainda assim é quase que impossível suportar sua fugacidade sem anestesia. O menino na esquina cheira cola, o rapazinho pobre fuma crack, o bacana sorve cocaína, o operário se empanturra de álcool, a mocinha na festa rave bebe o ectasy, a mamãe se molda no botox, o vovô fuma seu cachimbo e a vovó toma seu Lexotan. Os romeiros , ébrios de fé, desistem deste mundo de agruras, à espera de um próximo, repetindo a saga dos hebreus em busca da terra prometida. Crentes , como esponjas, se inflam de seus deuses, numa tentativa desesperada de encher seus espíritos lacunares. Almas vazias se lambuzam nos livros de auto-ajuda, sedentos de realizações e felicidade.
Todos , vazios como balões, iriam se inflando aos poucos do tépido ar dos sonhos, dos desejos , dos anseios e subiriam a atmosfera da vida sem direção, sem rumo, ao sabor dos ventos do destino, até a explosão previsível e definitiva. Os despojos da viagem tresloucada estavam expostos naquela sala: pingos ácidos de nada corroendo o tecido já poído do devir.

J. Flávio Vieira

Um comentário:

socorro moreira disse...

Meu Deus, como escreve bem, esse Doutor!