TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

CARIRI – A Nação das Utopias (parte 5)


Texto de Rosemberg Cariry


O boi Ápis mora em Baixa Dantas

Filho espiritual do padre Ibiapina, de Antônio Conselheiro e do padre Cícero, José Lourenço, um negro natural da Paraíba, ainda muito jovem, chegou ao povoado de Juazeiro do Norte (1890), atraído pelas notícias maravilhosas do “Sangue Aprecioso” da beata Maria de Araújo e pela fama milagreira do padre Cícero. O clima místico da cidade despertou a sua vocação religiosa e ele decidiu ser um beato. Ele poderia ter sido apenas mais um, entre as dezenas de beatos e beatas que perambulavam e esmolavam pelas ruas da cidade, vigiados de perto pelo olhar tolerante do padre Cícero. Mas a sua vivacidade, inteligência privilegiada e grande capacidade de liderança logo o fariam célebre na região. Seguindo os conselhos do padre Cícero, no início deste século, o beato José Lourenço arrendou o sítio Baixa Dantas, nas proximidades do Crato e para lá seguiu com diversas famílias, escolhidas entre as muitas que chegavam a Juazeiro nas grandes romarias. Organizando a comunidade com o rigor do trabalho e da oração, o beato José Lourenço conseguiu, em pouco tempo, resultados surpreendentes na agricultura, na criação de gado e na produção artesanal. A terra, até então tido como árida e encapoeirada, foi transformada, pelo esforço coletivo, em um verdadeiro pomar, produzindo frutas e hortaliças, além de algodão, café, arroz, feijão e mandioca. O produto da terra era repartido de forma igualitária entre os membros da comunidade que trabalhavam o dia inteiro e, à noite, se reuniam para as rezas, as novenas e as ladainhas.

A sorte da comunidade começou a mudar quando o beato recebeu do padre Cícero um boi zebu, de grande porte e beleza, que recebeu o nome de Mansinho e foi usado como reprodutor para melhorar os rebanhos da região. Por ser propriedade do padre Cícero e símbolo da bondade, da calma, da força pacífica e da fecundidade (rf. visão de Ezequiel), o boi Mansinho passou a ser tratado com muitos cuidados: banhos todos os dias, guirlandas de flores silvestres nos seus chifres e repasto do melhor capim. Como o “milagre da produção” realizado pelos “fanáticos e analfabetos” de Baixa Dantas já era visto como um perigo pela alta sociedade do Crato e de Juazeiro, o zelo com o boi terminou servindo para alimentar muitas fantasias maldosas. Ditos em palavras e firmados em letra de forma , os boatos davam conta de que a urina e as fezes do boi serviam de remédio (costume tradicional da medicina popular) e que era conduzido em procissão pelos seguidores do beato que o adoravam como Ápis - o boi sagrado do Egito. Floro Bartolomeu, influente político local e braço direito do padre Cícero, sentindo-se ameaçado pela crescente liderança do beato José Lourenço, acusa-o de “negro fanático”, manda prendê-lo e faz o boi Mansinho ser executado em praça pública do Juazeiro, para servir de exemplo contra os excessos da religiosidade popular. Que ficasse claro para o povo quem eram os verdadeiros líderes, representantes da “ordem e do progresso”, na região. Pouco tempo depois, liberto por influência de alguns pequenos proprietários de terra do Crato que também se beneficiavam com a mão-de-obra disponível no sítio Baixa Dantas, o beato retornou à comunidade, mas a desgraça viria novamente bater à sua porta. Com interesse nos muitos benefícios que foram realizados em suas terras, o Sr. João Brito, proprietário do sítio Baixa Dantas, despejou o beato José Lourenço e os romeiros da sua propriedade, sem pagar nenhuma indenização pelas benfeitorias realizadas.

Reinventando o paraíso

No ano de 1926, o padre Cícero procurou uma forma de aliviar os problemas causados pelo crescimento populacional de Juazeiro, que contínuo e desordenado. Ele orientou que as famílias de romeiros ocupassem as terras devolutas da chapada do Araripe e da Serra de São Pedro. O padre Cícero pediu ao beato José Lourenço que ele seguisse com várias famílias de romeiros para o sítio Caldeirão, de sua propriedade, localizado na cidade de Crato. O Caldeirão era um pedaço de terra “tirana”, seca e imprestável, de aspecto soturno com seus grotões (daí o nome “Caldeirão”) onde acumulava-se alguma água das boas invernadas. Esses grotões de água estagnada, com capacidade de resistir mesmo às secas mais sedentas, era também a morada da Mãe d’Água.

No Caldeirão, o beato estabeleceu a Irmandade da Santa Cruz do Deserto, ordem leiga de pobres penitentes - da qual ele era o “decurião” – aquele que planejava e governava a vida religiosa, social e econômica da comunidade. Trabalho, planejamento, inovação das técnicas agrícolas tradicionais, irrigação, disciplina, justiça social, fé em Deus e determinação para criar um novo mundo, foram os elementos fundamentais que transformaram o Caldeirão numa espécie de “celeiro do Cariri”. Plantações de algodão, arroz, cana e centenas de pés de frutas (laranja, abacate, cajá, banana, jaca, etc.) tomaram conta das paisagem. Desenvolveu-se a criação de pequenos animais domésticos e selvagens (bois, porcos, galinhas, emas, pavões, mocós, veados, teiús, preás etc.), foram erguidas 400 casas, um engenho para o fabrico da rapadura , um aviamento para a produção de farinha, depósitos para armazenar víveres, além de dois pequenos açudes que permitiam um sistema rústico de irrigação. Nas forjas, carpintarias e teares eram fabricados quase todos os bens de consumo e de produção de que a comunidade precisava: arados de madeira, moendas de engenho, prensas de aviamento, móveis, enxadas, pás, facas, tecido para roupa, alpargatas, gibões de vaqueiro, selas para animais, cabrestos, etc. A comunidade era auto-suficiente e os bens eram distribuídos de forma justa e igualitária entre os membros da comunidade (cada um trabalhava conforme a sua capacidade e recebia conforme a sua necessidade). Tudo o que sobrava da produção era armazenado e uma pequena parte destinada a venda e a troca com fins de venda e troca por alguns produtos impossíveis de serem produzidos na comunidade. A saúde da comunidade, preventiva e curativa, estava sob a responsabilidade do velho Bernardino, homem de grande conhecimento das qualidades farmacêuticas da flora regional e que tinha alguns conhecimentos práticos da medicina por ter sido enfermeiro em Recife. A fartura e a paz social do Caldeirão anunciavam-se aos olhos, barrigas e corações, de milhões de sertanejos como o “País de São Saruê” com suas farturas sem fim e delícias incontáveis. O beato Severino Tavares, arauto do evangelho popular, varava os sertões, anunciando a Terra da Promissão ( o País de São Saruê) para o novo povo escolhido por Deus (o selo da nova aliança se dera no Sangue vertido na boca da beata Maria). Ao Caldeirão, a cada ano, chegavam muitas famílias fugindo da fome e da servidão dos latifúndios. O crescimento da comunidade provocava inquietações nas autoridades e proprietários de terra da região que classificavam aquela experiência coletiva popular como “coisa de comunistas”. Denunciado em 1930, como subversivo e potencialmente perigoso para a ordem estabelecida, o beato José Lourenço recebe a vista de soldados das colunas revolucionárias tenentistas que tinham invadido o Cariri, sobretudo Juazeiro, o domínio do padre Cícero. No Caldeirão, os soldados nada encontraram, além de santos e utensílios de trabalhos. O beato e a sua comunidade são deixados em paz, os revolucionários tenentistas trataram de acomodar os seus novos interesses com os tradicionais interesses dos coronéis da região. A revolução de 1930 aconteceu para que tudo continuasse como antes ou como diziam seus líderes: “Vamos fazer a revolução antes que o povo a faça”. Na seca de 1932, enquanto milhares de camponeses morriam de fome nos campos de concentração organizados pelo Governo Federal, os camponeses que chegavam ao Caldeirão conseguiam sobreviver graças à grande quantidade de víveres estocados.

Com a morte do padre Cícero, em 1934, o sítio Caldeirão foi deixado em testamento para os padres Salesianos e estes logo reclamaram a retomada de posse da propriedade. O beato José Lourenço ainda tentou comprar o terreno, inutilmente. O clero regional, os políticos da Liga Eleitoral Católica e os grande proprietários de

terra viam no Caldeirão um exemplo que não deveria continuar por subverter a ordem vigente. Como preparação da destruição final, surgiram denúncias de que o beato era um perigoso líder comunista, que tinha um harém, que preparava o povo para a luta armada, etc. Os boatos e as calúnias antecipavam a repressão. Eram formas preventivas de proteger a (má) consciência para as violências e os horrores que logo viriam com a destruição da Comunidade. Eram estratégias para aqueles que precisariam, de alguma forma, ser, depois, justificados. Ao ter informações de primeira mão sobre a eminente invasão do Caldeirão, a Irmandade da Santa Cruz do Deserto resolveu que os beatos José Lourenço, Severino Tavares e alguns outros deveriam refugiar-se na chapada do Araripe. O Caldeirão ficou sob o comando de Isaías, um dos líderes da Irmandade. Tal precaução mostrou-se acertada por preservar parte da liderança popular. No dia 9 de setembro de 1936, uma expedição da polícia Militar, invadiu e destruiu o Caldeirão. As casas e armazéns foram saqueados e incendiados. Os homens, mulheres e crianças, humilhados e impotentes ante a agressão armada, foram aprisionados e amontoados nos currais de gado, sob coronhadas e pontapés dos policiais.

Surgiu a dissidência no seio da Irmandade. O beato José Lourenço, para a retomada do Caldeirão, pregava uma solução negociada com o governo. Já o beato Severino Tavares era partidário da retomada do Caldeirão pelas armas. Parte do povo refugiado aceitou a liderança do beato Severino Tavares e, em maio de 1937, atacou com paus, foices e pedras, policiais que foram atraídos até a chapada do Araripe. Morreram no embate o Capitão José Bezerra (um dos comandantes da invasão), o seu filho Anacleto e mais dois soldados. A morte do Capitão e dos soldados acendeu o pavio do barril de pólvora. O interventor Menezes Pimentel enviou reforços militares e três aviões para combater a “Nova Canudos”, o que resultou em um terrível massacre, com centenas de camponeses mortos, tanto entre os seguidores de Severino Tavares como entre os seguidores do beato José Lourenço. Alguns anos depois, quando ficou provada a sua inocência no caso dos policiais mortos na Chapada do Araripe, o beato José Lourenço pôde, por fim, estabelecer-se no sítio União, em Pernambuco, onde viveu até o ano de 1946, época em que morreu vitimado pela peste bubônica. O seu corpo foi conduzido em uma rede, nos ombros de homens que se revezavam na longa caminhada, para o Juazeiro do Norte, onde foi sepultado. Execrada e proibida durante décadas, a memória do beato José Lourenço e da comunidade do Caldeirão foi resgatada pelo povo Cariri, a partir do início da década de 80. O mito de José Lourenço fez o caminho inverso do mito de Tristão Gonçalves de Alencar Araripe. Se, no caso de Tristão Gonçalves, a “alma afoita” virou “alma santa”, no caso do beato José Lourenço, a “alma santa” virou “alma afoita” e tornou-se um símbolo da resistência popular. O beato José Lourenço, hoje, é legenda nas Romarias da Terra e nas invasões dos latifúndios pelo MST - Movimento dos Sem-Terra.

Um comentário:

SOS DIREITOS HUMANOS disse...

DENÚNCIA: SÍTIO CALDEIRÃO, O ARAGUAIA DO CEARÁ – UMA HISTÓRIA QUE NINGUÉM CONHECE PORQUE JAMAIS FOI CONTADA...



"As Vítimas do Massacre do Sítio Caldeirão
têm direito inalienável à Verdade, Memória,
História e Justiça!" Otoniel Ajala Dourado


O MASSACRE APAGADO DOS LIVROS DE HISTÓRIA


No CEARÁ, para quem não sabe, houve também um crime idêntico ao do “Araguaia”, contudo em piores proporções, foi o MASSACRE praticado por forças do Exército e da Polícia Militar do Ceará no ano de 1937, contra a comunidade de camponeses católicos do Sítio da Santa Cruz do Deserto ou Sítio Caldeirão, que tinha como líder religioso o beato JOSÉ LOURENÇO, seguidor do padre Cícero Romão Batista.



O CRIME DE LESA HUMANIDADE


A ação criminosa deu-se inicialmente através de bombardeio aéreo, e depois, no solo, os militares usando armas diversas, como fuzis, revólveres, pistolas, facas e facões, assassinaram mulheres, crianças, adolescentes, idosos, doentes e todo o ser vivo que estivesse ao alcance de suas armas, agindo como se ao mesmo tempo, fossem juízes e algozes.



A AÇÃO CIVIL PÚBLICA AJUIZADA PELA SOS DIREITOS HUMANOS


Como o crime praticado pelo Exército e pela Polícia Militar do Ceará foi de LESA HUMANIDADE / GENOCÍDIO / CRIME CONTRA A HUMANIDADE é considerado IMPRESCRITÍVEL pela legislação brasileira bem como pelos Acordos e Convenções internacionais, e por isso a SOS - DIREITOS HUMANOS, ONG com sede em Fortaleza - Ceará, ajuizou no ano de 2008 uma Ação Civil Pública na Justiça Federal contra a União Federal e o Estado do Ceará, requerendo que: a) seja informada a localização da COVA COLETIVA, b) sejam os restos mortais exumados e identificados através de DNA e enterrados com dignidade, c) os documentos do massacre sejam liberados para o público e o crime seja incluído nos livros de história, d) os descendentes das vítimas e sobreviventes sejam indenizados no valor de R$500 mil reais, e) outros pedidos



A EXTINÇÃO SEM JULGAMENTO DE MÉRITO DA AÇÃO


A Ação Civil Pública inicialmente foi distribuída para o MM. Juiz substituto da 1ª Vara Federal em Fortaleza/CE e depois, redistribuída para a 16ª Vara Federal na cidade de Juazeiro do Norte/CE, e lá chegando, foi extinta sem julgamento do mérito em 16.09.2009.



AS RAZÕES DO RECURSO DA SOS DIREITOS HUMANOS PERANTE O TRF5


A SOS DIREITOS HUMANOS inconformada com a decisão do magistrado da 16ª Vara de Juazeiro do Norte/CE, apelou para o Tribunal Regional da 5ª Região em Recife, com os seguintes argumentos: a) não há prescrição porque o massacre do Sítio Caldeirão, é um crime de LESA HUMANIDADE, b) os restos das vítimas do Sítio Caldeirão não desapareceram da Chapada do Araripe a exemplo da família do Czar Romanov, que foi morta no ano de 1918 e encontrada nos anos de 1991 e 2007;



A SOS DIREITOS HUMANOS DENUNCIA O BRASIL PERANTE A OEA


A SOS DIREITOS HUMANOS, a exemplo dos familiares das vítimas da GUERRILHA DO ARAGUAIA, denunciou no ano de 2009, o governo brasileiro na Organização dos Estados Americanos – OEA, por violação dos direitos humanos perpetrado contra a comunidade do Sítio Caldeirão.



A “URCA” E A “UFC” PODEM ENCONTRAR A COVA COLETIVA


A Universidade Regional do Cariri – URCA, pelo Laboratório de Pesquisa Paleontológica – LPPU bem como a Universidade Federal do Ceará podem encontrar a cova coletiva, pois têm tecnologia para tal.



COMISSÃO DA VERDADE ATRAVÉS DO PROJETO CORRENTE DO BEM


A SOS DIREITOS HUMANOS pede que todo aquele que se solidarizar com esta luta que repasse esta notícia para o próximo internauta bem como, para seu representante na Câmara municipal, Assembléia Legislativa, Câmara e Senado Federal, solicitando dos mesmos um pronunciamento exigindo que o Governo Federal informe a localização da COVA COLETIVA das vítimas do Sítio Caldeirão.



Paz e Solidariedade,



Dr. OTONIEL AJALA DOURADO
OAB/CE 9288 – 55 85 8613.1197 – 8719.8794
Presidente da SOS - DIREITOS HUMANOS
www.sosdireitoshumanos.org.br