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segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

Patrimônio Cultural, Memória, Identidade e Cidadania

Como professor de história da URCA, ministrando as disciplinas História e Memória e Cultura e Religiosidade, sou constantemente indagado pelos alunos sobre a situação do rico patrimônio histórico-cultural do Cariri. Como está o patrimônio cultural do Cariri? O que ainda existe? O que podemos fazer para preservá-lo? O que os poderes públicos têm feito? Essas indagações dos alunos do curso de história da URCA refletem um sentimento de preocupação com a preservação do patrimônio histórico-cultural que está cada vez mais presente na sociedade brasileira. Embora ainda estejamos distantes do desejado, cremos que aos poucos estamos avançando no sentido de termos uma plena consciência da importância da preservação da nossa história e da nossa cultura.

Existem dois tipos de patrimônio cultural: o material e o imaterial. O patrimônio cultural material é composto pelos bens imóveis, como os núcleos urbanos arquitetônicos históricos, e pelos bens móveis, como obras de artes e utensílios domésticos antigos. Por sua vez o patrimônio cultural imaterial é constituído, segundo a UNESCO, pelas “práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas e também os instrumentos, objetos, artefatos e lugares que lhes são associados e as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos que se reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural.”

Mas o que vem a ser patrimônio? No sentido amplo, patrimônio é tudo aquilo que herdamos do passado e que desejamos transmitir às gerações futuras. Agora, a definição do que deve ser legado ao futuro ou não pertence à sociedade ou a um determinado grupo da sociedade. Nesse sentido, o que é definido como patrimônio é uma construção social dos homens, num determinado tempo e espaço. Em outras palavras, é uma construção histórica. Segundo Elsa Peralta da Silva “aquilo que é ou não é patrimônio, depende do que, para um determinado colectivo humano e num determinado lapso de tempo, se considera socialmente digno de ser legado a gerações futuras. Trata-se de um processo simbólico de legitimação social e cultural de determinados objectos que conferem a um grupo um sentimento colectivo de identidade.”

O que mais importa, para nós, nessa discussão é percebermos que os bens culturais, materiais ou imateriais, constituem referências culturais fundamentais para a construção da memória de uma determinada sociedade ou grupo social. Entendemos como memória a capacidade do homem de atualizar impressões ou informações do passado. Ela é individual, mas conforme destaca Michael Pollak “ a memória deve ser entendida também, e sobretudo, como um fenômeno coletivo e social, ou seja, como um fenômeno construído coletivamente e submetido a flutuações, transformações, mudanças constantes”. Percebe-se, portanto que não existe uma memória dada, pronta. A memória é, na realidade, uma construção, visto que o que guardamos do passado são pedaços de memórias, lembranças soltas, muitas vezes vagas. Assim, quando nos dispomos a recuperarmos o passado a partir da memória, recorremos a essas lembranças. Aos poucos, vamos tecendo uma reconstrução do tempo pretérito, a partir desses pedaços e lembranças vagas.

Nesse processo, as referências culturais, lugares de memória, são essenciais. Quando se destrói um prédio, uma praça ou uma manifestação cultural está se destruindo a memória de um grupo ou de uma sociedade. Por exemplo, os prédios históricos do Crato (do século XIX, principalmente) foram, na sua maioria, destruídos. A cidade perdeu, dessa forma, parte da sua memória e da sua história. As manifestações da cultura popular, por sua vez, estão cada vez mais espremidas pela avalanche de modismos cada vez mais intensos.

A destruição do patrimônio cultural acarreta a destruição da memória. Por sua vez, a destruição da memória acarreta sérios problemas para a identidade do grupo social ou sociedade afetada. Isto ocorre porque a “a memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade tanto individual como coletiva, na medida em que ela é também um fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si” (Michael Pollak).

Lembremos-nos de Macondo, a aldeia do romance Cem Anos de Solidão, de Gabriel Garcia Marques. Tomados por um surto de amnésia coletiva os habitantes de Macondo perderam a memória e com isso perderam o sentido da vida, pois sem memória não há identidade e sem identidade a vida perde a sua razão de ser.

Portanto, lutar pela preservação do patrimônio cultural de um povo ou de uma cidade é lutar pela preservação da sua memória e da sua própria identidade. Assim como lutamos por melhores salários, qualidade de vida, meio ambiente, etc. devemos lutar também pela nossa memória, pois a memória de um povo ou de uma cidade é fundamental para a conquista da cidadania. Como muito bem frisou o historiador francês Jacques Le Goff, “a memória, onde cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir o presente e o futuro. Devemos trabalhar de forma a que a memória coletiva sirva para a libertação e não para a servidão dos homens”.

Referências Bibliográficas:
LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Unicamp, 1990.
POLLACK, Michael. Memória e identidade social. Estudos históricos. Rio de Janeiro: Vértice, V. 5, n. 10, 1992.
SILVA, Elsa Peralta da. Patrimônio e identidade. Os desafios do turismo cultural. In: http://www.aguaforte.com/antropologia/Peralta.html.





4 comentários:

Amanda Teixeira disse...

Eu - que já fui aluna de Océlio - gostaria de lembrar que o IPHAN, através do Projeto Cariri (em parceria com a URCA) vem fazendo um belo inventário de referências culturais aqui na região.

Contudo, ainda vejo grandes falhas em relação ao modo como o patrimônio "de pedra e cal" é tratado no Cariri. Sou estagiária do IPHAN, mas trabalho apenas com patrimônio imaterial e acredito que a URCA deveria dialogar mais com os órgãos e instituições que promovem a salvaguarda do patrimônio, para que não fiquemos apenas na dimensão imaterial, o que acarretaria um erro semelhante àquele cometido durante todas essas décadas em que apenas os prédios eram considerados patrimônios históricos.

No mais, o texto de Océlio é muito bom! Uma ótima introdução sobre a questão do patrimônio cultural.

Océlio Teixeira de Souza disse...

Prezada Amanda, obrigado pelo comentário. O objetivo do artigo foi exatamente o de manter acesso o debate em torno da situação do nosso patrimônio cultural. Quanto ao trabalho URCA-IPHAN é uma excelente parceria. Inclusive, quero lembrar, que eu fui um dos idealizadores do projeto e primeiro coordenador, em 2002-2003. Agora, o inventário e o registro de algumas referências culturais nos livros de registro do IPHAN não garante a continuidade dessas referências. Na realidade, a meu ver, o mais importante é a conscientização e participação da sociedade. Os instrumentos legais são também importantes, mas não bastam.
Um abraço.

José do Vale Pinheiro Feitosa disse...

Océlio: se alguém tinha dúvida para que serve a Universidade, o Océlio acaba de esclarecer. Não imagino o Crato sem as suas escolas de ensino fundamental e sem a URCA. Só o esforço do debate, da busca do conhecimento, da reflexão, nos remete dos sentimentos à formação de mentalidades. Os blogs desta região estão se tornando grande formadores de mentalidade, pois um texto como este depende de pesquisa, da experiência do professor, depende da reflexão e isso ele deu de graça para o bem comum da sociedade regional. Parabéns Océlio

Amanda Teixeira disse...

Concordo, Océlio. A preservação (ou não) do patrimônio só pode partir das pessoas para quem ele representa uma referência. Nesse sentido, acho que a educação patrimonial é algo bastante importante...