TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

quarta-feira, 2 de janeiro de 2008


A FLÁCIDA FUGA

Ou de como um rabo é historicamente enfiado entre as pernas em pleno mar, rumo aos mosquitos e aos tesouros dos trópicos, estando um povo de uma nação abandonado no porto, rezando para o mar secar


Já dizia o poeta Chico Buarque, canhoto, não sei se de esquerda, - “A história é um carro alegre / cheio de gente contente / que atropela indiferente / todo aquele que a negue.” Ao que junto aos conceitos do filósofo Walter Benjamim, de esquerda, não sei se canhoto, de que a história vive a sua eterna dialética entre o dito pelos dominadores e o desdito pelos dominados e que não existe futuro, o passado é que sempre retorna em forma de farsa. O fato é que a realidade nem sempre é resguardada pelos documentos, muito menos pelo canastrão rigor científico positivista, que atraído pela gravidade do poder, funda o cânone acadêmico e instaura a verdade absoluta, com a mesma desenvoltura de uma passista de escola de samba do primeiro grupo do Rio de Janeiro, toda assada em suas p-artes íntimas pela exuberância do seu fio-dental, mas que sabe que seus atributos encantam qualquer desprovido de percepção da realidade, seja ele rei ou presidente.


De certo a chegada da família real ao Brasil foi antes de tudo uma partida, aliás, uma re-partida, não só dividida entre os debandados e os abandonados, mas também dividida a colônia entre comércio e comerciantes de um lado, e aproveitadores e aproveitados do outro. Como diria o anarco-observador da real família brasileira Nelson Rodrigues, de direita, não sei se destro, - “A vida é uma bola dividida entre abastados e bastardos.”


Afinal, de que lado vossa excelência realmente esteve D. João VI, aquele que empanzina a própria dúvida? Será que do lado dos ingleses, para não perder a “autonomia” da colônia brasileira, a única provedora de abastança de uma corte preocupada apenas em construir igrejas e conventos, com belas cozinhas e belas freiras para vossa alteza provar? Ou será que do lado dos franceses, para perder apenas os dedos, mas não os anéis, como todas as outras cortes defenestradas do poder e humilhadas por Napoleão, em sua alucinada busca por mais e mais? Ou será ainda do lado dos portugueses, seus súditos reais, ao lado de quem vossa majestade defenderia com unhas e dentes os princípios de lealdade e bravura da insofismável Casa de Bragança, formando um grande exército armado de velas e terços? Ou será ainda, por último, do lado dos gentílicos brasileiros, aquela gentalha provinciana sempre disposta a arrancar do ventre da terra o sacrossanto rebento amarelo, que tanto alimentou a fome do tesouro nacional de Portugal, com toda a sua insígnia patética e luxúria?


Por via das suas grandes dúvidas, o magnânimo D. João VI resolveu usar a sua indelével astúcia de estadista, depois de encenar uma peça bufa, tragicômica, de neutralidade acovardada na disputa entre ingleses e franceses: não enfrentaria o poderoso e experiente exército de Napoleão e ainda teria a proteção da invencível armada britânica em sua “fuga estratégica para o Brasil”. Assim ele preservaria a Casa de Bragança e continuaria com a galinha dos ovos de ouro debaixo do fétido braço. E o povo de Portugal? Hã... o povo. Que povo!? O povo do regente D. João VI foi devidamente embarcado em uma esquadra composta por oito naus de linha, quatro fragatas, dois brigues e uma escuna, segundo afirma a historiadora Lilia Moritz Schwarcs, nem de direita e nem de esquerda, não sei se canhota ou se destra, em seu brilhante livro: A Longa Viagem da Biblioteca dos Reis, publicado pela Companhia das Letras. Quatro naus da frota inglesa, destacadas pelo almirante Sidney Smith, acompanharam a esquadra em debandada, dando proteção à família real, aos ministros, aos fidalgos, aos parentes, aos aderentes e aos absorventes que grudaram nas intimidades daquela governança e seguiram para o Brasil.


Os números são diversos, mas o historiador Kenneth Light estima que naquele obscuro dia 29 de novembro de 1807, poderiam ter embarcado entre 12 a 15 mil pessoas. Ao todo, ainda utilizando as informações contidas no livro de Lilia Moritz Schwarcs, foram avistadas pela embarcação inglesa Hibernia, 56 navios, ao anoitecer do primeiro dia de viagem, entre os navios da frota real e navios mercantes que seguiram vossa grandessíssima alteza. E claro, que o nobre regente não abandonaria os seus íntimos e jamais decepcionaria os seus destemidos monarcas que com-partilharam com ele a fuga para as terras distantes. A eles, ele, o glutão parvo, emprenhador de freiras e empregadas domésticas, daria um novo reino, distribuindo cargos, títulos e altos salários, todos pagos pelas riquezas brasileiras, devidamente usurpadas, a partir do confisco das propriedades privadas para abrigar todo o bando no Rio de Janeiro. Assim se instalou o ócio real no Brasil, que com toda pompa imperial definiu os caminhos oficiais da apropriação do bem público, mania infame que atravessou séculos, monarquias e repúblicas, até às “dinastias” atuais da nossa política.


Imagine essa escória administrativa embarcando na fuga, debaixo de chuva e com as tropas francesas lideradas pelo general Junot, já nos arredores de Lisboa, além de toda população indignada pela traição do abandono. Deve ter sido um pandemônio, um verdadeiro arrastão no piscinão de Ramos, uma verdadeira praça da Apoteose após o desfile de uma escola de samba tentando administrar a certeza da queda para o segundo grupo. As reações foram diversas, como também as desorganizações em pares e ímpares. Alguns afirmam que D. João VI, com toda a sua grandeza, chegou ao porto fantasiado de mulher, pra evitar os apupos. Outros afirmam que ele embarcou de noite, sorrateiramente, para evitar os gritos de traidor. Outros ainda afirmam que ele chegou ao porto desolado, acompanhado apenas pelo seu sobrinho e sem ninguém para esperá-lo, atestando o esfacelamento da corte portuguesa, que perante a Europa não era grande coisa mesmo, conhecida pela sujeira de suas cidades e pelo fanatismo religioso alimentado pelos tribunais da inquisição e pela intervenção da igreja no estado; como também era a corte portuguesa conhecida pela sua falta de conhecimento tecnológico e pela limitação intelectual dos seus administradores.


Naquela confusão toda foram deixados para trás a Biblioteca Real, único laivo de cultura da corte – mas que não era consultada por quase ninguém - , os soldados do regimento de infantaria real – que não embarcaram por falta de acomodações, pois os urubus da corte já haviam se instalado devidamente - , e o verdadeiro povo de Portugal, sem dinheiro, sem comida, sem liderança, mas com a nobre missão de combater as tropas de Junot. Muito estratégico!. Isso é o que se chama de devoção ao povo. Um verdadeiro exemplo de isonomia, de caráter, de civilidade, de permissão divina para governar. O flatulento regente ainda deixou a recomendação para o seu fiel povo de que recebessem bem as tropas francesas, para que nada constrangesse as relações amigas. Há registro de que a única frase lúcida da rainha demente, D. Maria, foi: “Não corram tanto, ou pensarão que estamos fugindo.” Ora pois pois....

Marcos Leonel


– não é historiador, mas quando jogava bola batia com as duas: direita e esquerda, diz ele. Mas há controvérsias, afinal a história é cheia de histórias!

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