A Terrível luta do cavaleiro do eterno
contra o dragão do efêmero
"Mas, porém, eu não invejo
O grande tesôro seu,
Os livro do seu colejo,
Onde você aprendeu.
Pra gente aqui sê poeta
E fazê rima compreta,
Não precisa professô;
Basta vê no mês de maio,
Um poema em cada gaio
E um verso em cada fulô"
Patativa
Imaginem um índio velho, sozinho em meio à floresta devastada. Arquivo último do seu povo e da sua cultura. Sentado à beira do rio, já sem o bulício de peixes na superfície, contemplando um ponto vago do horizonte sem fim. Já não há crianças a quem contar as histórias do seu povo, as oferendas de seus deuses , a epopéia dos seus heróis. A morte que o espreita vorazmente , por entre os últimos galhos da mata, sabe que em pouco carregará não um velho minguado e caquético, mas sugará, para sempre, toda a história de um povo: com suas fraquezas, seus mitos, suas crenças, suas esperanças e conquistas. O índio velho, frente à destruição inevitável, poderia muito bem apressar o crepúsculo, tirando de Anhangá este prazer último. O cacique de uma tribo que se resume nele próprio, no entanto, resolve confrontar a morte e a inexorabilidade do destino :passa a narrar detalhadamente, dia após dia, noite após noite, toda a história da sua nação, aos únicos interlocutores possíveis: as árvores, o rio, os pássaros, os peixes...E ali permaneceu, aguardando o fim previsível, como que escrevendo na lâmina da águas, levantando castelos na areia , feliz, na certeza que desenhava alguma coisa de eterno, na volúvel tela do efêmero .
Elói Teles de Morais foi um pouco deste índio. Nascido em Crato em 1936, ainda menino começou a trabalhar em amplificadora local (inaugurada em 1937) e terminou por pegar gosto pela coisa. Funcionário Público , labutou por muitos anos na Inspetoria Federal da Defesa Vegetal em Crato. Já nos finais dos anos 50, enveredou pelo Rádio . A pioneira no Cariri: “A Araripe” , ligada aos Diários Associados, fora inaugurada em 1951. Com o anos, fez-se um dos radialistas mais influentes do Ceará e, praticamente, perfez toda via-sacra do Rádio: noticiarista, repórter, comentarista de futebol, diretor e produtor de vários programas ligados eminentemente à cultura popular. Dentre eles “ A Voz do Povo”, “Coisas do Meu Sertão” e o “Sertão Como é que é” , sem esquecer o “Forró da Casa Grande”, apresentado aos sábados. Aos poucos se foi ligando umbilicalmente aos grupos folclóricos locais. Organizou-os politicamente e muito da divulgação da Cultura Popular no estado ( como o Projeto Mestres da Cultura, por exemplo) deve-se ao trabalho pioneiro e incansável de Elói Teles. Tribute-se a Elói , também, o esforço na manutenção do “Festival Folclórico do Cariri”, iniciado por J. de Figueiredo Filho e Pedro Teles . Fez-se também cordelista e fundou, em 1991, “A Academia de Cordelistas de Crato” que tem batalhado sem cessar na continuidade dos registros do cordel em tempos de despudorada globalização.
O amor de Elói Teles pela cultura popular, no entanto, ia bem além da simples afeição artística. Não via os grupos como um trampolim para suas aspirações pessoais. Esta afinidade fazia-se uma extensão da faceta mais forte da personalidade do nosso radialista: a política. Envolvido em campanhas do PSD, da UDN e do PTB, sempre carregou consigo fortes matizes de esquerda. Sonhava com um mundo melhor e mais igualitário. Estas tendências revolucionárias levaram-no , ainda nos albores do golpe de militar, à prisão: de 15/4/1964 a 08 de junho do mesmo ano. Preso em Crato junto com : José Figueiredo de Brito Filho( funcionário local da Agência do Banco do Brasil), Juvêncio Mariano (comerciante),Raimundo Coelho Bezerra de Farias( médico do SAMDU), Francisco Soares de Figueiredo, Francisco Ivan de Figueiredo, Saturnino Candeia, Kleber Callou, Ernani Silva, José Alencar Arrais e Luiz Gonzaga Martins. O tempo demonstraria claramente a visão vesga e obtusa da Ditadura Militar, todos, sem exceção se mostraram ,com o passar dos anos, pessoas dignas, cordatas e exemplares cidadãos deste país. Alguns, inclusive, eternos militantes de direita e que terminaram enclausurados por conta do entreguismo estabelecido num Estado que se tornou quase que uma focococracia.
Acusaram Elói de integrante da Frente Estudantil Operária Camponesa; participação num esquema Comuno-Sindicalista; ligação ao PCB e no processo de Comunização do Brasil; manifestações subversivas como organizador sindical e propagandista subversivo; praticante de desordem e greves; proselitismo comunista; integrante da Frente de Mobilização Popular. Acusações que beiravam o delírio. Durante todo período de caça às bruxas, de dedo-durismo desenfreado, Elói Teles manteve uma postura digna e corajosa e depois do arrefecimento dos ânimos, não levou consigo travo ou rancor. Sabia dos seus delatores, mantinha distância regulamentar, mas não destilava veneno. Lembrava com carinho, apenas, a coragem de duas personalidades do Crato : Pedro Felício Cavalcante , inimigo político, mas que teve a hombridade de visitá-lo e usar a influência que tinha para ajudar na sua libertação e Chico Soares , uma das figuras mais irreverentes da cidade e que, sem temer represárias tão comus na época, todo dia lhe levava merenda. Elói Teles percebia , claramente, que a identidade brasileira residia no âmago das nossas mais simples e espontâneas manifestações populares. Defender a Cultura Popular representava para ele unir-se ao povo nos seus anseios e aspirações e lutar pelo Brasi Cabôco de Zé da Luz.
“ Um Brasi bem brasilero,
sem mistura de instrangêro
Um Brasía nacioná!”
Talvez tenham sido os tempos difíceis que forjaram nosso Elói no mesmo cadinho com que se modelam os Arianos. Ele imaginava uma arte ligada às raízes mais profundas, fixa e imutável e que se necessitava lutar desesperadamente para mantê-la assim: pura e inconsútil. Abominava as quadrilhas juninas que buscavam ironizar a figura do matuto, os cordéis moderninhos e , certamente, odiaria as mungangas e gritinhos histéricos das Bandas de Forró. É que em meio a tantos entreguistas, tantos vendidos, tantos hipnotizados pelo consumo, haveria a necessidade premente de um radicalismo do bem. Máxime com a queda do Muro de Berlim em 1989, quando o Capitalismo enganosamente surgiu como verdade única, monocórdica e irrefutável. Ele,com certeza ,percebia a luta inglória em que estava metido, como um general do Exército de Brancaleone, mas fingia não ver o moto-contínuo da vida se desenrolando à sua frente.
As encruzilhadas do destino armaram-lhe a emboscada final em outubro de 2000. O Crato perdeu, de supetão, um radialista inventivo e com grande potencial de comunicação. Os grupos populares viram-se órfãos, sem o seu Moisés, em busca da terra eternamente prometida. Perdemos a possibilidade quase que única de ter em mãos a “História do Rádio no Cariri” que ele tanto desejava publicar.
Antes de tudo, no entanto, perdemos o homem Elói Teles de Morais : corajoso, destemido, capaz de lutar pelas verdades em que acreditava até às últimas conseqüências. Radialista formam-se, articuladores culturais forjam-se, escritores surgem dia após dia. No entanto, homens com a força de lutar por ideais , capazes de sonhar e alimentar utopias , estão em falta nas prateleiras cada vez mais desinteressantes da humanidade.
Havia um pouco daquele índio Cariri, correndo nas veias do Seu Elói: remanescente último de uma tribo que foi pouco a pouco se aculturando, que foi podando suas próprias raízes, sem perceber que sem elas não mais vem a vital seiva nutritiva. Ele sabia da necessidade premente e muitas vezes perdida de resistir ao ataque de tantos caras-pálidas. Num mundo globalizado, onde se pretende unificar todas as culturas em uma única, a do colonizador, Seu Elói entendia exatamente, que ,sem nossas raízes culturais, não somos absolutamente nada: não mais teremos identidade própria, nem passado e muito menos futuro. Biblicamente viveu clamando no deserto, pregando aos passarinhos como São Francisco. Amplificou a voz dos cantadores de viola, dos poetas nordestinos, das sanfonas, das rabecas, dos zabumbas e dos triângulos; mostrou a todos, que a realidade do mundo necessita intrinsecamente da nossa "circunstância", como diria Ortega Y Gasset. Tanto gritou que um dia sua voz começou a falhar, mas teimou até o fim , como um velho índio , contando a história do seu povo aos pássaros e às árvores... Acolhido no seio da nação Cariri, deve ter seu justo sonho embalado pelos acordes dos pífaros dos Anicetos; dos passos do Reizado do Mestre Ademir; do Coco de D. Edite da Batateira; do lamento da rebeca do Cego Oliveira e das imprecações de Zé Gato... certamente era esta a concepção perfeita de Seu Elói para o Céu!
J. Flávio Vieira
Publicado na Revista Zoom Publicidade em Dez/07
Um comentário:
Zé Flávio,
Que belo e inspirado texto.
Realmente, são palavras a altura da vida e da obra deste Homem (com H maiúsculo) que tão bem representou o que de melhor o Crato já teve.
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