TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

Feudalismo

Mas que gente ignorante...
Orlando Fedeli

Dona Cleonira, minha professora primária - que fazia questão de ser chamada de Cleô - senhora baixinha e arredondada como uma chaleira, ensinou-me que foi Colombo quem provou que a Terra era "era redonda como uma bola, um pouco achatadinha nos pólos". Antes dele, os homens da Idade Média - gente muito ignorante... muito atrasada... - pensavam que a Terra era plana e chata. Boa Dona Cleô, que nos mandava recortar borboletas e desenhar carneirinhos em cada página do caderno, que queria bem limpinho: a pedagogia e a didática exigiam. E ela era uma Pedagoga.
No ginásio, tive outras professoras de História. Uma delas, bem mocinha e de saia curta, mascava chicletes durante as aulas, mandava os alunos lerem o livro ou fazerem "trabalho em grupo" - pesquisa, dizia ela - e, enquanto isso, pintava os lábios olhando-se num espelho baratinho. De vez em quando fazia um curto comentário: "A Idade Média foi uma época muito ignorante e atrasada. Imaginem! Eles não tinham televisão nem moto! Andavam de carroça! A mulher não tinha direitos, não havia escola pública e eles pensavam que a Terra era plana. Hoje nós estamos adiantados: tem computador, o homem chegou à Lua, e qualquer uma sabe que a Terra é redonda."
No colegial, a professora de História - a Lenindira - era de outro estilo. Não se pintava nem usava espelhinho barato. Usava jeans, óculos de lentes redondas e enormes que tornavam seus olhos míopes minúsculos. Tinha preso na blusa um bottom onde se lia: "O povo unido jamais será vencido". Falava em mais valia e exploração do proletariado. Proclamava-se atéia, dizia que éramos filhos de macacos e desancava a Idade Média, idade das trevas e da ignorância, na qual o povo era obrigado a viver rezando, enquanto a Igreja queimava os hereges e ensonava que a Terra era plana.
Entrei num Cursinho. As classes eram abarrotadas de moços e mocinhas preocupados com o vestibular e com rock. Alguns falavam em drogas. Os professores despejavam matéria aos borbotões. O professor de História, muito popular, recheava suas aulas de palavrões e slogans marxistas. Atacava a censura e defendia a liberdade. A cada cinco minutos dizia uma piada pornográfica. Todo mundo ria. Cinicamente. Debochadamente. Menos um colega, com cara desanimada, que fazia o Cursinho pela terceira vez. Ele não ria. Explicou-me que já ouvira todas aquelas piadas três vezes. Sempre nas mesmas aulas. Sempre na mesma hora. Sempre do mesmo jeito. Sempre com os mesmos palavrões. O professor os repetia sempre do mesmo modo. Como um autômato. E falava em liberdade. E sempre a mesma história: "A Idade Média tinha sido uma época muito ignorante. Naquele tempo os homens acreditavam que a Terra era plana".
* * *
Um dia, um amigo me convidou para visitar um professor. Era um sobradinho, num bairro pobre. A sala pequena estava cheia de rapazes que riam. O professor falava pelos cotovelos enquanto tomava café. Não havia palavrões.
A conversa rolou para a Idade Média. Eu, ingênuo, repeti o que aprendera nos chatos e rabiscados bancos de minhas escolas. Soltei lá o "meu" comentário: "Eu acho que a Idade Média foi uma época de gente muito ignorante - é até chamada a Idade das Trevas - na qual se queimava quem não era católico e se ensinava que a Terra era plana e chata." Pensei que ia fazer sucesso e que todos apoiariam minhas palavras, já que essas eram teses universalmente aceitas em nosso científico, progressista e tolerante século XX.
O professor, rindo, me atropelou, contundente: "Quem lhe contou essa lorota?"

Quase engoli uma azeitona que comia, com caroço e tudo. A palavra "lorota" era uma trombada em minha erudição e cultura históricas.
Sem jeito, respondi que todo mundo sabia que era assim. Todos professores que tive me ensinaram isso. Por minha memória passavam rapidamente as imagens de Dona Cleô, recortando borboletas; a mocinha que mascava chicletes, se olhando em seu espelhinho barato; Dona Lenindira com o seu bottom; o professor do Cursinho, escarrando palavrões e vomitando pornografia.
Envergonhado com essas imagens, não as citei. Falei de livros vagos, de jornais, de um filme - "Vocês não viram O nome da rosa?"- todo mundo sabe que a Idade Média foi uma época de gente muito ignorante, que pensava que a Terra era plana, não esférica. Isso é indiscutível.
Meu adversário, na polêmica que se montara, sorria. Citou fatos e autores. Como eu não capitulava e insistia, buscando desesperado no fundo dos arquivos de minha memória - tão vazios! - as informações de Lenindira e as provas que o professor do Cursinho não me dera, ele foi buscar uma pilha de livros que começou a me mostrar.
"Veja este livro. Aqui temos a reprodução de uma estátua de Carlos Magno. É um obra romântica do século IX, embora o cavalo seja do século XVI. Repare que o Imperador está com os símbolos de seu poder: usa coroa, numa das mãos porta a espada e na outra segura um globo"
"Que você acha que significa esse globo? Pensa que Carlos Magno fosse talvez campeão de jogo de ‘boccia’? "Esse globo representa a Terra, sobre a qual ele tinha poder. Se os medievais julgassem que a Terra era plana, deviam colocar na mão do Imperador algo como uma tábua, e não um globo. Gente realmente ignorante essa da Idade Média - ironizou o professor. Acreditavam que a Terra era plana e a representavam por meio de um globo".

São Tomás de Aquino - o maior gênio medieval - tratou da questão em pauta na Suma Teológica . Veja o que diz S. Tomás ao cuidar dos fins das ciências:
"O astronômo, por exemplo, demostra a mesma conclusão que o físico, ou seja, a esfericidade da Terra."
"Então o maior filósofo medieval afirmava que a Terra é redonda."
"É incrível, exclamei. Como é que ninguém diz que S. Tomás ensinava isso? Será que ninguém conhece esse texto? Parece-me impossível que ninguém o conheça."
"Realmente é impossível que ninguém o conheça, concordou o professor. Se os que o conhecem não o mencionam, é porque há tal preconceito contra a Idade Média, por ter sido uma época católica, que o mundo moderno ateu tem que denegri-la. E o preconceito é tão forte que ninguém se dá ao trabalho de verificar se uma acusação que se faz contra ela é verdadeira ou não.

7 comentários:

Antonio Prado disse...

Tenho acompanhado essa luta solitária e até, em parte, inglória, de Armando Rafael com respeito ao legado da monarquia. Mas, mesmo assim, ele tem se comportado com muito nobreza e lealdade. Tal postura, nos leva a refletir sobre a mudança de regime, ocorrida em 1889: ela teria sido de fato benéfica ao Brasil?
Devemos, desta forma, sem preconceito e sem patrulhamento (e muito menos sob ressentimentos gerados ao sabor de polêmicas infrutíferas), debater sobre isso. Afinal recuperando um "ideal" marxista, o povo ainda pode "virar a mesa".

Vital Corrêa Braga disse...

Parabéns prof. Armando!
Compreendi o sentido subliminar do artigo do pensador católico Orlando Fedeli.
Concordo com o ele em número, gênero e grau. A História tem um compromisso com a verdade e não com as ideologias de um determinado grupo de pensadores. Ao historiador, cabe examinar os fatos prudentemente, e não criá-los do seu imaginário. Extrair dos documentos, somente aquilo que eles realmente transmitem, sem introdução de conclusões inexistentes (extra-fatos). Como afirma a medievalista Régine Pernoud, a verdade é o lema do historiador: “A História não tem interesse a não ser quando busca a verdade”. (PERNOUD, Idade Média: O que não nos ensinaram. 1994, p. 145).Quando se navega pelo conteúdo exposto nos livros escolares, no que se refere à Idade Média, tem-se a impressão de estar retrocedendo a um período obscuro, dominado pelas trevas da ignorância do povo e do monopólio do saber pelo clero. Afirmo ser esse um dos males de nosso século, que se proclama iluminado pela luz da ciência e liberto da escuridão do “atraso” medieval. Enganam-se os que persistem em repetir os mesmos falsos slogans que se distanciam do que é a realidade. Podemos classificar esses chavões não como argumentos concretos, mas como fábulas e mitos que desprezam aquilo que traz verdadeira dignidade a alma humana: o direito à Verdade.

Marcos Vinícius Leonel disse...

Louvo aqui a sua erudição histórica em combater aqueles que acham que a Idade Média foi um período de muito esclarecimento a partir do incólume aprofundamento filosófico tomista se a terra era redonda ou triangular, como também atesto a sua indelével capacidade científica em demonstrar que não existe ignorância nenhuma no fato da santíssima inquisição queimar várias pessoas, vivas, e ao mesmo tempo, em um ritual justo e igualitário, que preservava de forma definitiva a dignidade humana. Creio realmente que esses mitos e essas lendas que a favelada de esquerda disseminam devam ser desmascarados por tamanha profundidade argumentativa.
Muito elegante da sua parte.

Marcos Vinícius Leonel disse...

Digo: (...) que a Idade Média NÃO foi um período.

Amanda Teixeira disse...

Não exageremos...
Acho que não podemos dizer que a Idade Média foi a "Idade das Trevas", mas também não devemos exaltá-la como se estivesse muito acima de todas as outras. É preciso dar valor ao desenvolvimento da filosofia no medievo, sim. E, pra quem admira muuuuuito a Idade Moderna, é bom lembrar que foi no "Tempo das Trevas" onde foi gestado o nascimento do tal "Iluminismo". Ele não veio do nada, pode ter certeza. Em todos os tempos houve atrocidades como as da Inquisição, não acho que esse seja um bom critério de julgamento.
Enfim... não estou defendendo a Monarquia nem uma História livre de ideologias (acho que detergente é a única coisa neutra no mundo), mas também não deixo a Idade Média ser atacada... acho que esse "mal-entendido" já deveria ter sido superado de uma vez por todas. Idade das Trevas não existe.

Armando Rafael disse...

Na verdade, a Idade Média (com o feudalismo) representa o tempo que o artesão/operário/agricultor melhor viveu em termos materiais e espirituais.Segundo o Papa Leão XIII, "Tempos houve que a filosofia dos Evangelhos governavam as nações".Embora caluniada, na sociedade feudal cada grupo social detinha uma função. O clero cumpria a função da salvação da alma de todos, a nobreza deveria proteger a todos, principlamente os mais fracos e os servos deveriam retribuir trabalhando para ajudar a sustentar essa pirâmide social.
Era comum o servo, para obter as terras dentro do feudo do senhor feudal ou nobre, jurar fidelidade a esse senhor. Essa cerimônia era baseada na relação de suserania e vassalagem realizada entre suserano e vassalo. E esse contrato era mantido como código de honra. Ao jurar fidelidade um ao outro, o senhor se comprometia a proteger o servo. Porém, o servo deveria dar em troca um conjunto de obrigações que passaria para a História como obrigações servis.
O Próprio Marx reconheceu que a melhor época de justiça social em relação ao trabalhador rural.

Armando Rafael disse...

O último período saiu incompleto. Ei-lo como deveria ter sido públicado:

O Próprio Marx reconheceu ter sido a Idade Média a melhor época de justiça social no tocante ao pequeno trabalhador rural.