Dizem que não aprecio as cidades. Pura invenção. Já gostei de caminhar pelos bairros antigos do Recife como quem percorre as galerias de um museu. Ia da ponte mais distante sobre o rio Capibaribe até a rodoviária. Nunca mais fiz esse percurso. A rodoviária mudou-se para longe e prefiro o interior seguro de um carro com ar refrigerado. Deixo de ver cenas inesquecíveis, que se mostram apenas aos que andam a pé. De carro, não veria a anã sentada no caixote, em frente a um pardieiro. As casas ainda possuíam entrada lateral, um pátio onde se plantavam romãzeiras que não cresciam além das flores. Romãs e tâmaras, pura nostalgia de um passado oriental, de mascates sírios e libaneses.
A anã recostava-se na parede de uma casa de porta e janela. Não lembro se cantarolava cantiga de roda, enquanto esperava por alguém. Suponho que sim, do mesmo jeito que suponho ter visto, numa cama desarrumada, dois gatos se enroscando entre lençóis puídos. Ou seriam dois bebês, um preto e um branco? Não eram. Os bebês eu vi numa outra casa do bairro, numa festa carnavalesca, quando atravessei os corredores de um sobrado ameaçando cair. Os amigos afirmam que eu sofri uma alucinação, pois sempre fui dado a visagens. Mas, eu garanto que vi.
Os dois meninos lembravam os santos Cosme e Damião. Mais tarde, quando investiguei a mitologia dos orixás, compreendi tratar-se dos Ibejis, os gêmeos travessos que brincam com fogo. Na casa, praticava-se a religião africana e com certeza os dois estavam de visita. Até a morte eles enganaram, quanto mais um sonhador como eu.
Alguns carnavalescos abriam suas residências para os blocos que desfilavam no Recife. Ofereciam comida e bebida farta. Nenhum dinheiro em troca, apenas o regalo da festa. Para a dona da casa, uma negra criada no culto nagô, a motivação também era o prazer. Da terceira linhagem de escravos libertos, que ainda guardava na memória a fala ritual de sua gente, ela cantava e rezava em nagô, mesmo sem saber a completa tradução do que repetia.
Estou no círculo mais distante da mesa de comidas. Tento alcançar uma fatia de melão. Os brincantes suados e bêbados me empurram para bem longe dos manjares. As melancias se afastam de mim, os bolos se transformam em saliva na boca. Mais gente entra na sala de repasto. Sou empurrado para longe. Desisto. Viro as costas para a mesa e encontro um corredor longo e estreito. Quartos de ambos os lados, portas abertas e fechadas, armários, cadeiras, trastes indecifráveis na sombra. Numa cama velha de casal, dois bebês engalfinhados, um preto e um branco. Sete passos adiante, três pretas velhas bebendo aguardente.
- Quer?
- Não bebo cachaça.
- Não sabe o que perde.
Perco o Recife de alumbramentos, fechado no meu carro blindado.
- Quem são os dois meninos?
- O senhor viu?
- Vi.
Elas gargalham e entornam a aguardente goela abaixo. Riem de minha cara, como rio da anã, sentada no caixote. Também espero os acontecimentos no beco estreito, onde os mascates expunham peças de damasco e tafetá de seda, e as mulheres trocavam temperos de uma cozinha para outra, estendendo os braços nas sacadas: pimenta por cravo da índia, noz moscada por alecrim, cardamomo por sálvia.
Sento no meio fio. Ninguém estranha meu gesto. O nariz rastreia cheiro de merda por debaixo dos extratos de mijo. Sou um arqueólogo de sensações, investigo a propriedade que possuem os corpos de emanar partículas voláteis, capazes de afetar o olfato do homem. Aspiro o cheiro de santidade e latrina com o mesmo fervor.
- Já comeu?
- Comi - respondo mentindo.
As pretas velhas se referem à mesa posta para os brincantes do carnaval, frutas e carnes, abundância de culinária na casa nagô transformada em sede de bloco carnavalesco.
- Então, beba.
- Desculpem, não bebo cachaça.
- Nem oferece ao Santo?
- Não sou devoto.
A mais gorda ri.
- Mas vê coisas. Imagine se fosse.
A anã se mexe no assento improvisado. Nem observei que entrou em casa e trouxe uma garrafa de cerveja. Sem pressentir, ela move uma palha nos meus pensamentos, no projeto de chegar à rodoviária e enviar encomenda para a cidade de interior onde nasci.
- "Queridos pais, segue..."
Mas não contava com a interdição do caixote, a cena que me paralisa mandando ao inferno os deveres de filho responsável.
- "Queridos pais: saí de meu apartamento decidido a enviar os remédios da avó, que vocês me pediram para comprar aqui, porque o preço é bem mais em conta. Atravessei ruas de casas que já foram habitadas por famílias e se transformaram em comércio, vocação de mascatear que Recife possui desde que foi fundado. Passa das sete da noite, as portas de ferro baixaram com estrondo, pelas janelas entreabertas avisto retardatários arrumando mercadorias. Não sei em que pensam. Sinto-me perplexo andando no meio de frutas apodrecidas, esgotos, lixo e cães vadios. Não consigo avançar um passo além da linha divisória de um caixote em que uma anã sentou-se, como se fosse rainha do mundo. Reconheço, aterrorizado, uma grandeza que antes me escapava. Minhas pernas tremem."
As três mulheres sentadas em volta da mesa bebem copos de aguardente como se bebessem água. Avisto nas paredes velhos estandartes de carnaval, de clubes e blocos. Num nicho, uma vela acesa.
- E o que faz aqui?
- Vim atrás do bloco.
- E saiu bisbilhotando a casa?
- Desculpem, é um vício de menino.
Estacionou um automóvel numa casa vizinha à da anã. Uma senhora sai da casa, entrega um pacote ao motorista e recebe dinheiro. O automóvel vai embora explodindo o escape. A senhora cumprimenta a anã. Ouço perfeitamente a pergunta:
- E ele?
Um estampido mais alto não me deixa ouvir a resposta.
Descubro que as casas são habitadas por pessoas ocultas. Elas reinventam a arquitetura antiga, improvisam cozinhas, salas, quartos e banheiros.
- E o Recife adormecia...
Escutei perfeitamente. A anã cantarola entre um gole de cerveja e uma baforada de cigarro. Olha para o meu lado, mas não é a mim que espera.
A porta de uma casa se abre e um homem acompanhado de um cão bota sacos de lixo na calçada. Entra na casa de volta e fecha a porta. Sinto-me mais sozinho. Se levantar-me e caminhar ligeiro, ainda alcançarei o ônibus para minha cidade. Mas não consigo transpor a linha imaginária que delimita o espaço desse mundo marginal em que eu e a anã nos sentamos esperando alguém.
Ouço passos logo atrás de mim. Não deve ser ele. Nunca o imaginaria chegando sorrateiro, oculto na sombra dos paredões. Ele chegará de frente, cansado e feliz. Já de longe sorrirá para a anã, que o reconhece pelo cheiro de graxa da roupa, pelo assobio fino, pelo caminhar macio.
Será mesmo ele que chega igual a todas as noites? Levanto-me como no cinema, antes do beijo da última cena. A anã também se levanta do caixote, vai ao encontro do homem e estende a mão. Se fosse mais alta enlaçaria sua cintura. Passo por eles sem cumprimentá-los. Se caminhar ligeiro, chegarei à rodoviária a tempo. Olho uma última vez para trás. Vistos de costas, os dois formam um casal tão amoroso que mais parecem gêmeos.
Ronaldo Correia de Brito é médico e escritor. Escreveu Faca e Livro dos Homens. Assina coluna na revista Continente.
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